domingo, setembro 28, 2008

O Grande Desafio!

Evangelho segundo S. Mateus 21,28-32.
«Que vos parece? Um homem tinha dois filhos. Dirigindo-se ao primeiro, disse-lhe: 'Filho, vai hoje trabalhar na vinha.’ Mas ele respondeu: 'Não quero'. Mais tarde, porém, arrependeu-se e foi. Dirigindo-se ao segundo, falou-lhe do mesmo modo e ele respondeu: 'Vou sim, senhor.' Mas não foi. Qual dos dois fez a vontade ao pai?» Responderam eles: 'O primeiro.' Jesus disse-lhes: 'Em verdade vos digo: Os cobradores de impostos e as meretrizes vão preceder vos no Reino de Deus. João veio até vós, ensinando-vos o caminho da justiça, e não acreditastes nele; mas os cobradores de impostos e as meretrizes acreditaram nele. E vós, nem depois de verdes isto, vos arrependestes para acreditar nele'.»
Da Bíblia Sagrada

quinta-feira, setembro 18, 2008

1ª Carta aos Coríntios 12,31.13,1-13.
Aspirai, porém, aos melhores dons. Aliás, vou mostrar-vos um caminho que ultrapassa todos os outros. Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, sou como um bronze que soa ou um címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom da profecia e conheça todos os mistérios e toda a ciência, ainda que eu tenha tão grande fé que transporte montanhas, se não tiver amor, nada sou. Ainda que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado, se não tiver amor, de nada me aproveita. O amor é paciente, o amor é prestável, não é invejoso, não é arrogante nem orgulhoso, nada faz de inconveniente, não procura o seu próprio interesse, não se irrita nem guarda ressentimento. Não se alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais passará. As profecias terão o seu fim, o dom das línguas terminará e a ciência vai ser inútil. Pois o nosso conhecimento é imperfeito e também imperfeita é a nossa profecia. Mas, quando vier o que é perfeito, o que é imperfeito desaparecerá. Quando eu era criança, falava como criança, pensava como criança, raciocinava como criança. Mas, quando me tornei homem, deixei o que era próprio de criança. Agora, vemos como num espelho, de maneira confusa; depois, veremos face a face. Agora, conheço de modo imperfeito; depois, conhecerei como sou conhecido. Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e o amor; mas a maior de todas é o amor.

segunda-feira, setembro 15, 2008

A promessa…
A Ti’ Joaquina Rosa tinha já muitos, muitos anos, quando eu, muito criança, brincava, ali, na calçada do Largo do Pereiro, “à sombra” da minha avó Emília, enquanto os meus pais lidavam nos afazeres do campo. Era uma figura castiça, com fama e proveito de uma inteligência fora do normal, “danada para o negócio”, quase impossível de se deixar enganar. “Ladina como uma raposa” – dizia-se. Era conhecida na Aldeia e por toda a redondeza, andando de terra em terra, com o burro carregado de loiças de barro, raramente o poupando ao peso do seu corpo bem avantajado. Eram numerosas as histórias que se contavam da sua sagacidade, algumas ainda passadas de boca em boca até aos que agora são contemporâneos dos seus bisnetos. A maior parte das lendas conhecidas diz respeito à sua enorme apetência pela boa comida E nisto tenho de lhe gabar o bom gosto
Ora, no primeiro fim de semana deste mês, de muitas emoções e memórias, abraços para aqui e conversas para ali, veio à baila o meu passeio até à Senhora da Póvoa. Logo uma querida amiga de infância se havia de recordar de uma das muitas “aventuras” da Ti’ Joaquina Rosa.
No meio de gargalhadas e boa disposição as coisas ter-se-iam passado mais ou menos assim:
Ainda o século passado era menino e nenhum de nós tinha nascido, já a festa de Nossa Senhora da Póvoa dava brado por toda a Beira Baixa e até mais longe. Na parte Sul do nosso Concelho, era mesmo um dos poucos e fortes pontos de referência com o Norte, a par da “Terra Fria”, onde se iam fazer as ceifas e buscar sementes para renovar as culturas e tentar conseguir melhores colheitas. Mas vamos à Ti’ Joaquina Rosa, antes que ela nos escape.
Chegara a Primavera, os aleluias pascais já tinham ficado para trás e o mês de Abril cedera, no movimento perpétuo da Terra, lugar ao mês de Maio.
- Ó Emília, tenho vontade de ir à Senhora da Póvoa. Mas a merenda está-me a fazer confusão, pois lá em casa as farturas não são nenhumas…
- Ó Joaquina, tu nunca paras em casa, andas sempre no teu negócio. Que vais tu “cheirar” à Senhora da Póvoa??? Também cá temos a Senhora da Graça…
- Ó Emília, tenho mesmo de ir. Fiz uma promessa a Nossa Senhora…
- Estás sempre com as tuas… Que promessa foi, desta vez?
- Olha, prometi a Nossa Senhora estar lá no seu dia e comer da melhor merenda que se encontre no arraial…
- Tu estás boa do tino? Com a filharada que tens e com negócio que pouco dá, não te vejo maneira de comeres da “melhor merenda da festa”.
- Ando cá com ideias. À festa vou. A merenda também se há-de arranjar!
O tempo passou rápido, conversas de festa mais não houve.
Para espanto da minha avó materna, na segunda feira do Espírito Santo daquele tão longínquo ano, não viu a Ti’ Joaquina Rosa. Não ligou importância ao facto, dado que era normal ela sair, com o seu burro, alta madrugada, para efectuar o pequeno negócio a que se dedicava, tantas vezes trocando pratos, tigelas, jarros… por feijão, milho, centeio ou o que houvesse, pois dinheiro é que não abundava.
Já a semana ia alta, quando se reencontraram.
- Ó Joaquina, nem te tenho visto. Por onde andaste?
- Não te falei que tinha uma promessa à Senhora da Póvoa? Fui na segunda feira…
- Ora, ora. De burro lá foste?! Mas não tinhas falado em “comer a melhor merenda”… Não me cheirou a nada…
- Olha, Emília, essa foi a parte mais fácil…
- Fácil?! Como podes dizer uma coisas dessas, mulher? Não troces da miséria…
- Então, ouve-me com atenção. Levantei-me muito cedo, aparelhei o burro, a lua deu um jeitinho e aí vou eu. Chegada a hora da Missa, lá estava eu no meio daquela gente toda…
- Mas a merenda, a merenda?!
- Espera aí, que a merenda já aparece. Assisti à Missa, fui na procissão e não me esquecia de ir rezando “minha Senhora da Póvoa ajudai-me a cumprir a promessa”. Já viste como é. Acabada a parte religiosa, foi um estender de mantas e toalhas por cima daquela erva toda. Aproximei-me de cada família, cumprimentava “Boa tarde!!!!” “É servida?” diziam-me, simpáticos, “ Por enquanto, não, obrigada; tenho uma promessa a Nossa Senhora de comer da melhor merenda; pode ser que cá volte; até já!” Ó Emília, tu não vais acreditar, mas TODOS me disseram que ficavam à espera, com um sorriso.
- E depois? E depois? – questionou a minha avó, mais que conhecedora das artimanhas da vizinha, mas ansiosa.
- Tem calma, que vais saber o resto. Dei volta ao arraial, fiz a minha apresentação, à medida que ia passando, e ia deitando o olho. Quando já tinha visto o suficiente, voltei àquela que me agradou mais e apresentei-me “Há pouco convidaram-me para comer da vossa merenda, eu disse que tinha promessa de comer da melhor que cá estivesse; a vossa é, sem dúvida, a melhor merenda deste arraial, aceito o vosso convite”.
- Ó Rosa, é preciso descaramento. Que grande lata!!! – exclamou a minha avó indignada.
-Ó Emília!!! Havias de ver a cara de satisfação com que me receberam!!! Fui mais que mimada. Afinal, graças a mim, ficaram a saber que tinham a melhor merenda de todo o arraial de Nossa Senhora da Póvoa. Olha que ainda me podiam ter dado algum para o caminho…
- Francamente, Joaquina, francamente! Que descaramento!!! – murmurava, quase incrédula, a minha avó…

Nota:
Acho que a Ti’ Mari’ Rosa tinha razão: hoje, os nossos “provadores” fazem-se pagar “a peso de ouro”; estava avançada para a sua época.

segunda-feira, setembro 01, 2008

A Caminho da Senhora da Póvoa ´2


A Promessa - 2ª. parte
Enquanto recordava as peripécias de há anos atrás, depois da conversa com a prima, Carminda tinha a certeza de que não ia ligar mais ao assunto. Estava encerrado mesmo. Deus mandava-lhe ser boa, mas burra é que não. Duas tentativas, sempre com o mesmo resultado, eram de mais. A prima não batia bem da bola e Nossa Senhora da Póvoa ia dar-lhe “um desconto”. Sim! Afinal também era Mãe dela e as mães dão sempre “um desconto”…
- Ora esta! Tanto que eu tenho de fazer! Vem já aí a Festa, o ensaio das alvíssaras e dos cânticos da Missa, os bolos, a limpeza da casa, a visita do senhor padre – ai, se as coisas não estivessem num brinquinho, na sua modesta casa, seria uma vergonha. Pobre sim, mas asseada – ia pensando com seus botões. Mas o pensamento não têm travões. Ah! E a festa a Senhora do Incenso já ali mesmo à porta, ia ser p´ra deslumbrar com os seus dotes de cozinheira. O belo galo tinha os dias contados, os chouriços estavam uma delícia. Porco bem tratado. As pataniscas. Os pasteis de bacalhau... Queijo do melhor. As azeitonas estavam para “comer e chorar por mais”... Não bebia, mas a pinga não havia de faltar. E da boa. Ah! A toalha a estender na relva ia ser surpresa. Das poucas economias tirara algum para deslumbrar o pessoal. Até salada haviam de ter, de umas alfacitas escapadas ao frio do Inverno que passara. Uma trabalheira, como se já não bastasse ter casado com um ganhão “o mais desgraçada dos trabalhos” - desabafava Mas agora que o filho mais velho regressara de África, são e salvo, ganhara novas forças. Ele bem lhe ia contando que outros seus amigos não haviam tido tanta sorte… Porque baixaria a voz, quando falava nestes assuntos? Mas já tinha uma netinha, com dois anos, nascida na “tropa”. Esta gente nova não tem juízo nenhum, sempre cheia de pressas. E um netinho de meses…Olha a pressa! Não, desta vez já não foi um jipe militar que levou a mãe à maternidade. Ah! A merenda não seria p´ra valer menos que nos outros anos. Ter alegria … alegria é que ia ser difícil. Viera um, fora o outro, que “estava passando um inferno lá Guiné”. Tanto, tanto rezava que até adormecia de cansaço, com o terço nas mão, depois de um dia de trabalho sempre a doer. “Estes malandros dos ricos ficam com tudo e só não nos tiram o sangue porque depois já não têm quem trabalhe para eles”. Mas aquele filho lá na Guiné, quando já pensava que se safava… Um sofrer tão forte que nem de noite nem de dia se acalmava. Doía… doía… doía. A sua cabeça, sempre àlerta, parecia agora o fervedouro do caldeiro pendurado nas cadeias onde aquecia a vianda do porco…E o coração estalava… estalava… Seria da idade? Mas ainda pouco passava dos quarenta e já tanta opressão. Bom, isto há-de passar. Um já cá está… o outro. “Olha, Mãe do Céu, também to entrego”. Ia pensando, pensando, mas nada estorvava o seu constante mourejar…
As horas, os dias dessa semana da “estrafega” passaram, num instante. O pessoal com a Banda a percorrer as ruas da Aldeia, à meia-noite de Sábado Santo, todo o povo a cantar as alvíssaras em alegres aleluias, o sino quase a partir de tanto tocar – “aquela garotada tá toda maluca, ainda racham os sinos!” – a Missa, as escadas enfeitadas com rosmaninho, o Senhor ressuscitado em casa de cada um “Ò Senhor Prior vá lá nem que seja um borrachãozinho!” “Obrigado, ti Carminda, mas não pode ser…” e mal houve tempo de dizer ai e já os joelhos se dobravam “Senhora do Incenso. Senhora do Incenso, Virgem Mãe .. o meu filho .. o meu filho!!!” Ai o Amor de mãe, o Amor da Mãe!!!
Vinha no regresso, saboreando os elogios do merenda que preparara e de que mal provara, sempre atenta às necessidades de cada um, que não as dela, quando bate na testa e exclama:
_ Ora esta!!! O meu Tó já cá está e temos de ir à Senhora da Póvoa, a pé. Olha se me esquecia…
E, naquela tarde, fosse pelo cansaço, fosse pelo problema já poucas palavras lhe ouviram.
- Ó Carminda, estás tão calada!... Sentes-te doente?...
- Ai, homem, não vês que estou cansada? As mulheres somos umas desgraçadas…Logo tu só sabes pegar na rabiça do arado… E outros nem isso…
Sempre resmungona, sempre a refilar, mas seria sempre a paixão da sua vida. Mulher a valer, nem em casa nem no campo nenhuma “lhe deitava água nas mãos…”
Ia por uma das ruas de Aldeia, onde naquele tempo ainda a vida fervilhva, quando topa a prima.
- Ó Maria, lembras-te da conversa que tiveste comigo na Semana Santa?
- Entã…ão não há…via de lem…lem…brar?. C’a res…pos…ta que tu me…me deste?!
- Olha. Prometi a Nossa Senhora da Póvoa que iria lá, a pé, quando o meu Tó viesse da África. Vou falar com ele e depois te digo alguma coisa?
- Então pos…so te..er s’pe… ran…ça?
- Olha, nem sim nem não… Espera pela resposta.
O tempo passa depressa e, logo na primeira ocasião, lá vai.
- Ó Tó, tenho uma coisa p’ra te dizer. Quando andavas por lá, prometi ir contigo à Senhora da Póvoa, se voltasses em condições de ir… Que me dizes?
- Ó Mãe. Na nossa Família as promessas são para cumprir. Quer ir já este ano?
- É melhor. P´ró ano não sabemos se lá chegamos…
- Então como é que isso funciona?
- Olha, aquela pateta da tua prima Maria já lá foi a desinquietar-me Eu disse-lhe logo que não, pois já chega a parvalheira das duas últimas vezes. Mas de companhia faz-se melhor o caminho. E vou ver se arranjo um grupinho…
- Ó Mãe, mas eu moro em Penamacor… A que horas é que me quer cá?
- Bom, temos de sair às 3 da manhã para assistirmos a tudo. Até porque nunca se sai à hora certa, Tu estás levantado às cinco e meia e pronto a marchar. Batemos-te à porta e “ala que se faz tarde”.
- Ó Mãe, mas a promessa que fez por mim fica coxa…
- Deixa lá que Nossa Senhora vai ter em conta as caminhadas que eu já fiz…
Confortavelmente instalado na posição que lhe era “oferecida” o filho não “foi capaz” de arranjar argumentos. As Mães são mesmo assim: se pudessem, andariam sempre com os filhos ao colo.
Eram cinco e meia da manhã, quando um rijo bater à porta, na Rua Padre Mestre, mesmo por cima da antiga 1ª. Companhia Disciplinar, me acordou.
- Quem é???!!! – perguntei, estremunhado.
- Sou eu!!! Então ainda estás na cama???
- Ó Mãe, desculpe, mas deixei-me dormir…
- Quero-te cá em baixo, num instante. Não, não quero subir que acordamos os gaiatos e perdemos tempo. Despacha-te…
Se despachei??? Ora, vocês não tiveram a sorte de conhecer a minha Mãe…
Eram cinco mulheres e um rapaz. Sim, rapaz, eu tinha 27 anos…
Penamacor fica para trás, num instante. Curva e contra curva pela estrada da época, passada a antiga estalagem aí está o acesso para a carreira de tiro, o sol despontara numa radiosa manhã de Primavera, num alvorecer inesquecível, mas que, temíamos, pudesse dar para o calor. Reza-se, canta-se conversa-se, pensa-se. Já a Meimoa acorda, quando atravessámos o povoado. Eu, com menos dez quilómetros rodados, sempre a puxar.
- Filho, vai mais devagar. Julgas que temos a tua idade? Além disso, vamos chegar a horas.
Sobe, sobe, curva e mais curva e aproximava-se a descida, a caminho do ”lugar da crise”. Duas das peregrinas, bem lembradas, não querem repetir a “proeza”. A minha Mãe, bate no ombro da prima e pôs o dedo no nariz: “Sscchhiiuu” A outra percebe todo o drama da situação e faz “que sim” com a cabeça. Todos se calam e só se ouvem os sapatos a bater na berma da estrada trás… trás … trás… catrapás … A tensão aumenta entre as duas. Ou agora ou nunca. Mais uns passos, mais uns minutos, lá se avista a capela e… pronto. Já passou!
A descontracção começa a instalar-se. Cinco dos caminhantes preparam-se para retomar a conversa, quando, Deus do Céu, não podia ser:
- Ó se.e.nhor pró.prio.f’sor, foi me.e.esmo a.ali a.atrás que das ou.ou.tras ve.e..zes “per…er.di a pro.pro.me.essa”…
Primeiro, um silêncio opressivo. Depois um riso a medo, seguem-se cinco gargantas escancaradas a rir, a rir em gargalhadas que ressoaram, quase de certeza, por montes e vales, até aos declives da Serra de Opa, seguramente até aos ouvidos de Nossa Senhora da Póvoa. Que deve ter rido também connosco.
Só a Maria, atarantada, perguntava, gaguejando:
- Ó Cra,car.min.da, no stá.ás zan.gaa.da com.comi.mi.go???!!!

(As situações narradas são fruto da imaginação do autor; qualquer acontecimento da vida real que se lhe assemelha é pura coincidência)
Notas:
Naquele tempo ainda se tratavam os professores por “senhor” ou “senhora”.
Acredito que, lá no Céu, Mãe e filhas se riem com gosto, quando recordam estas “aventuras” tão descuidadamente humanas. Fazem-me saudade!
1 de Setembro de 2008