segunda-feira, dezembro 15, 2008

Apanhar a azeitona


Era um som lúgubre, estranho, "atroando" as madrugadas frias, chuvosas, escuras do mês de Dezembro da minha infância. O toque do búzio. Ou dos búzios. Que cada rancho tinha o seu. E era reconhecido por cada um, sem grande margem para dúvidas. Foram difíceis, muito duros aqueles anos de meados do século XX. As guerras haviam terminado - a do Franco e a do Hitler - com todo o rasto de misérias que também nos tocaram, das quais a fome não esteve ausente. Excesso de população, a terra mal distribuída, umas centenas trabalhando para meia dúzia "deles", "à jorna" quando não de arrendamentos. Uma exploração desenfreada e sem vergonha. Há quem pense que o roubo do suor de quem trabalha é de hoje. Mais velho que a invenção da escrita... Na minha Aldeia, os tenentes da propriedade que valesse a pena contavam-se pelos dedos de uma das mãos: A "Casa FF", com a parte do leão, a "Casa OM", a "Casa PM", a "Casa D.A", e a "Casa PA"... Depois ainda uma meia dúzia de remediados, com umas oliveiritas, dando para a sua família e pouco mais. Os restantes, umas centenas, tinham de viver à custa de muito curvar a cabeça e aguentar, aguentar, aguentar... De mais!!!
Embora fossem ganhar uma miséria, paga em espécie, acotovelavam-se para terem a sorte (má) de arranjar lugar num dos ranchos que fosse apanhar a azeitona daqueles/as senhores/as a quem andavam a "tirar o chapéu" durante o ano inteiro "Como está, meu senhor/minha senhora, vosselência passou bem???!!!!" Mas vamos à azeitona. Tocava o búzio, saltavam da cama a correr, se ainda o não haviam feito, mal vestidos, mal comidos, mal calçados aí vão eles aos tropeções, o Sol tardando bastante a iluminar e a aquecer, se é que não vai estar tapado todo o dia, ou mesmo cair uma carga de água. As distâncias a percorrer, antes de "pegar", eram grandes: "Minas do Palão", "Carreira de tiro", "Antas"... "Baságueda", "Barros" eram sítios ermos e distantes por onde tinha de se começar. Primeiro os "ossos", bem longe; depois, lá mais para o fim, ir-se-iam aproximando do "Povo", quando as forças já mais que faltavam. Percorridas distâncias inimagináveis nos dias de hoje, pés ensopados e roupinha agarrada ao corpo, tantas vezes molhada, lá se aguentavam aqueles "pobres de Cristo" para apanharem sacas e sacas de azeitona, outras vezes enchendo aquelas grandes arcas colocadas sobre o carro puxado pelas vacas mansas e sofredoras, como eles companheiras de desgraça. Encostavam-se sete ou oito escadas de madeira bem altas, com 18 ou 20 "banzos", ao redor das grandes oliveiras, por elas subiam os homens que iam ripando, à mão, as azeitonas geladas. A vara, pendurada ao lado da escada, só podia ser usada para que nenhuma azeitona ficasse lá nas pontas mais distantes, onde o braço bem esticado não chegava, pois o "varejo" "prejudicaria" a colheita do ano seguinte. Em baixo, as mulheres - uma por cada homem que subisse - estendiam os panais onde se iam recolhendo os frutos que caíam; muitas, mesmo muitas azeitonas eram apanhadas do chão encaramelado, os dedos não conseguindo unir-se de tanto frio, às vezes atenuado pelo passar breve na fogueira fumarenta de ramos molhados ou até verdes. Luvas? Se calhar, nem sabiam que existiam...
Qual o objectivo destas molhadas de gente a trabalhar naquilo que não lhe pertencia? Para todos eles seria conseguir 1/5 (UM QUINTO a dividir por todos os "casais"!!!) do que apanhassem. O famigerado "QUINTO"... O dia passava áspero, muito duro. De quando em vez, ainda havia força para soltar um daqueles nossos cantares tão típicos de cada trabalho e época. "Alegrem-se os Céus e a Terra..." ou "Azeitona galeguinha..." Quantas vezes ouvi esta, não no trabalho quase cruel da sua apanha - aqui fui poupado! - mas na festa de encerramento das colheitas, lá para fins de Dezembro ou até em Janeiro, com que os donos dos olivais, em jeito de "adoçarem a boca" a quem tanto a amargara, "obsequiavam" a quem tanto exploraram.
No regresso, quase em silêncio, já o escuro não permitia que se enxergasse o mau piso dos caminhos e das estradas daquele tempo. Energia eléctrica não havia. Só no lagar dos "F's", produzida por um dínamo accionado por uma máquina a vapor. Um espanto para os muitos gaiatos em que me incluía, e até para os adultos. Passavam apressados e esfomeados pela ruas da Aldeia. Chegavam a casa, acendiam o lume no "lar" de granito, com lenha verde, às vezes; de pouca qualidade, quase sempre. Tudo cheirava a fumo. A panela de ferro era encostada à chama, para dela sair a ceia com que "enganar a fome". O caldeiro de lata, para aquecer água ou a vianda do porco, ficava suspenso na "cadeia" de ferro, amarrada a um "caibro" do tecto de telha vã da cozinha, por onde se escapava o fumo. Em volta da chama, formando um semi-círculo, sentava-se a família, em assentos de cortiça ou madeira, mal acomodados se a filharada era muita. Na panela eram metidas umas batatas e umas couves traçadas. Conduto? Era uma grande sorte ter umas azeitonas da "apanha" anterior, um bocado de toucinho, um ovo era de festa, pão centeio nem sempre bem amassado e bem cozido. Um fiozinho do azeite "bem poupado" por um ano, dava algum aconchego ao que se engolia, quantas vezes sem vontade nem conforto. Dois dedos de conversa, uma acção de graças para os que sabiam rezar e entendiam o que diziam, à luz baça de uma candeia de azeite ou de um candeeiro de petróleo - noutros só a claridade que a própria fogueira deitava. Uma sorte haver ainda umas castanhas cozidas para comer. Ou uns figos secos... Sem rádio nem televisão, na mais completa ignorância do que se passava no Mundo. Quase todos analfabetos. Uma sorte???!!! "Gaiatos, vamos para a cama que amanhã temos de levantar cedo". Quando o sino da torre da igreja badalava, lentamente, as nove horas da noite já aqueles corpos cansados, extenuados se preparavam para repousar. A enxerga de era dura e irregular. Mole se não houvera palha com que enchê-la, no Verão anterior. A roupa da cama era grosseira, de fraca qualidade. Alguma da que se vestira para trabalhar ficará a enxugar, ao calor das brasa que se vão apagando. Para vestir no dia seguinte. Quando tudo se repetirá. Sem esperança nem futuro. A emigração estava para chegar. Ir para a França "a salto" era o que os ricos estavam a pedir. E iam ter...
Havia ainda os "lacaios", sempre de "coluna vergada" - instinto de sobrevivência? - e os "gatunos". Estes eram capazes de roubar os "patrões" e também a parte dos seus companheiros de desgraça, no caminho de regresso, no escuro que se fizera. Com eles não vale a pena perder tempo nem ocupar espaço...
Aos valentes resistentes dos quais já poucos restam, ao meu Tio Fernando que ainda lá vive e foi capaz de dizer "basta!!!" eu dedico este simples texto e um alegre cântico de libertação!!!

1 comentário:

Vanda RS disse...

Uma descrição tão detalhada que quase que deu para sentir o cheiro da lenha, o frio... ... e ficar a pensar como hoje em dia vivemos no "luxo" e nos queixamos de tudo e mais alguma coisa.
Um grande beijinho ao tio Fernando, que é sem duvida um resistente e que eu tenho sempre o prazer de ver, por vezes beber um café e conversar um pouco quando vou à Aldeia de João Pires.