domingo, dezembro 07, 2008

O nosso madeiro

Dia 8 de Dezembro.
Não era preciso serem nomeados. Os "rapazes das sortes" (recenseamento militar, na época aos 20 anos) sabiam que, à saída da missa do dia da Senhora Conceição, o madeiro estaria - tinha de estar!!! - a dar entrada no adro da igreja da nossa Aldeia. Desse por onde desse, custasse o que custasse. Isto passara de geração em geração. Sem apelo nem agravo. Lá pelo fim do Verão, cada um ia deitando o olho a qualquer sobreira de bom porte, que já não estivesse "bem de saúde". Sim, que os ricos eram "bons", mas não parvos. Árvore a que ainda se tirasse a cortiça ... nem pensar. A malta ia trocando impressões "no Lavadouro da D. Maria parece que está lá uma mesmo a calhar" ou "eu passei pelo Sobreiral e talvez tenhamos sorte com aquela..." "eh! pá vi uma ali para as Limpas... ali mesmo a jeito" e ainda "no Carvalhal" - bem, sei que é um pouco longe - mas esta é que não falhava"... Opiniões, conversas, umas mais rentáveis que outras, vantagens daqui e problemas dali acabava por se chegar a consenso. Mas ainda era preciso convencer o/a dono/a. Devo dizer, com toda a franqueza, que a "Casa Franco" tinha a porta a que mais vezes se batia. Também eram os donos de meia Aldeia. Feito o pedido, normalmente bem aceite, ainda que fosse por outro "palpite" do proprietário do futuro madeiro. Era só preparar a festa, que iria durar noite inteira de 7 para 8 de Dezembro. Naquele tempo não havia tractores, nem motosserras, nem empilhadoras. Abundava, sim, uma grande vontade de "fazer figura". Ah! O transporte!!! Se havia mancebos, cujos pais possuíam carro e junta de vacas, esse(s) estava(m) logo "mobilizado(s)". Se esta situação não ocorresse, lá vinha o padrinho, o tio, o vizinho ou a simples solidariedade, tão tradicional em muitas dos trabalhos das nossa Aldeia. Ao entardecer do dia há muito determinado, tocava o búzio que também juntava o pessoal da apanha da azeitona, naquelas frias manhãs do Inverno da nossa meninice, a rapaziada das sortes ia-se juntando e, aos poucos, o grupo compunha-se com familiares e amigos, merenda bem aviada, os garrafões ali à mão, que a noite não ia estar para brincadeiras, com frio e trabalho, tantas vezes a chuva para "ajudar". Serras, serrotes, enxadas, picaretas, machados, cordas, alavancas tudo era pouco para uma jornada que ia dar que falar, poucas horas depois. E havia que não "fazer ronha" encostando-se à fogueira, à merenda ou aos garrafões. Primeiro todos trabalhavam, depois todos comiam e bebiam. A chouriça, a morcela, o queijo, as azeitonas e o vinho corriam de mão em mão. Já os ramos maiores haviam sido derrubados - as pernadas mais fracas alimentavam a fogueira onde se iam aquecendo, à vez, ou por lá ficariam - e restava aquele enorme tronco, quase impossível de fazer vir abaixo. Por sorte, todo o esforço se concentrava agora nas raízes. Bater, cortar, serrar, empurrrar "a ver se vai"... "não, não vai... tás maluco ou quê? ainda temos muito que pernear". Bate daqui, tira terra dali, corta acolá "deixa ver essa machada que estás aí a fazer sorna" ou "pega-me à "sarra" desse lado" ... mais um empurrãozinho" ... Está quase"... "fujam que já la vai" ... "pronto, já está"... "já está??? Quem é que consegue carregar um "burro" destes"? Temos que o cortar pelo menos em três "metades". Mais uma rodada para ganhar coragem, um bocado de queijo "não, eu prefiro o chouriço que está muito bom". Pelas cinco da manhã tudo está traçado. "Atão os ganhões não aparecem?" "Querem ver ainda o sol nasce e eles nem de comer deram às vacas?" "Calma que já ouço o barulho das rodas dos carros". Um, dois três, quatro carros. "Será que chegam? Não que este ano temos aqui "um monstro". "Se for preciso, venho cá outra vez". "Isso é que havia de ter uma porra de piada", "eu bem disse que havíamos de ter pedido ao Pechinchinho", "vamos mas é deixar de conversa, que essa não carrega os carros". Empurra daqui, força dali, uuuppppaaa!!! vai o primeiro e o dono, com pena das vacas, protesta "bonda, assim está bem". "Vá, leva lá mais um tronco e assim vai tudo de uma vez". Contrariado, não tem outro remédio, senão aceitar. Sucessivamente, aos poucos, a sobreira vai passando para cima dos carros e, pelas oito horas, o desfile aí vai. No laranjal ao lado foram "pedidas emprestadas" uma tantas laranjas que a malta vai comendo e, é da "lei" cada vaca levará uma espetada nos cornos, dezasseis, portanto.
Calhara bem a Missa às 10 horas. Quase tudo funcionou como um relógio. Que não o da torre, que quase nunca dava horas de jeito. Mas calhou mesmo certo, sem relógio nem nada. O nascer do Sol era suficiente para todos saberem às quantas andavam.
A canalhada veio à beira do Povo espreitar a proeza e junta-se à algazarra. Sim, naquele tempo, quem tivesse menos de 18 anos nem podia pensar em pôr os pé na rua, depois do toque das "Avé-Marias". Portanto, só agora viam o madeiro "ena tão grande!!!". O mulherio, acabado de sair da Missa, espreitava, no adro, enquanto se ia aquecendo ao sol e desenferrujando a língua numa de "prós e contras". Empoleirados lá no alto dos carros, que as vacas, mansamente e bem decoradas puxavam, calmamente, os moços "das sortes", por conta de quem a festa corria, entoavam cânticos de Natal, habitualmente desafinados - ah! quando havia a sorte e o dinheiro para contratar um "tocador" (de concertina) é que era festa mesmo p'ra valer!!! - iam dando vivas para aqui e para ali, a este e aquele, muito lembrado o que dera a sobreira e a sua família - e atirando laranjas às moçoilas namoradeiras, pelo menos prontas para isso. Está bem de ver que cada um sabia onde "acertar". Elas ficavam vermelhonas, mas a laranja era uma "seta" bem dirigida, quase sempre com um "sabor" mais "doce" do que aquele que o fruto podia em si conter. Repicavam os sinos na torre, com sorte podia ouvir-se um morteiro. Ou dois. "Desvio" das festas de Verão??? Não se sabia "por conta de quem". Que a GNR não era para brincadeiras. As suaves ladeiras de acesso ao adro eram vencidas, com a generosa mansidão da força das vacas. Às vezes, uma ajuda da rapaziada para uma junta menos possante.
Descarregar os pesado troncos é a parte mais divertida e fácil Fazer de valentes frente aquele Povo ali reunido redobrava as forças e não demorava muito que um morte de troncos se ajeitasse para aquecer os corações e os corpos na noite de consoada, na das filhós, na do bacalhau com couves traçadas bem regadas com azeite novo, Missa do Galo, noite escura iluminada pelas luzes bruxuleantes das lanternas de azeite. Falaremos nisso muito proximamente.
Empilhados os troncos, era a altura dos "vivas" em jeito de agradecimento "vivam os rapazes das sortes" "viva quem deu o madeiro" "viva a família de quem deu o madeiro" "vivam as raparigas da nossa aldeia", "viva o Povo de Aldeia de João Pires", "viva quem nos ajudou" e que quase sempre terminava com um "viva o madeiro qu'inda está inteiro" e "viva eu!!!".
A festa chegara ao fim. Os do ano seguinte não precisavam de ser nomeados: no próximo dia 8 de Dezembro a folia correria por sua conta...


http://uk.youtube.com/watch?v=hI60YFNZO80

3 comentários:

LUNA disse...

Bem Prof. que linda prosa aqui tem...e eu nem me canso de a ler!!! No Vale era quase assim...mas acho que não havia laranjas nem a dar às moçoilas nem a enfeitar as vacas!!!
Ah...e depois a canção escolhida....que lindo!!!
Que bom é voltar ao tempo antigo!!!
Bem haja por mais esta pérola!!!!

Vanda RS disse...

Que lindo saber a história do Madeiro! Já nos tinha contado, mas mas não tão pormenorizadamente.
Deliciei-me com esta Viagem no Tempo e até consegui sentir o cheiro do Madeiro no ar!

Unknown disse...

É mesmo um reviver do passado, tão igual ao nosso, mas, como diz a Melita, laranjas nem uma. Também não as havia, só bravas. Mesmo agora, com menos rapazes, os mais velhos lá vão arranjando maneira de haver um bom madeiro. Está quase, já me estou a ver, com a minha malta, à saída da Missa do Galo, aquecer as mãos e preparar para ir cantar o Menino Jesus e ir entrando nas nossas casas, beber uma jeropiga, comer uma filhó, o nosso Natal de sempre e sempre com muito Amor. E mais uma vez, parabéns pela prosa.