domingo, dezembro 20, 2009

O Conto da minha Vida!

SUAVE MILAGRE
Nesse tempo, Jesus ainda se não afastara da Galileia e das doces, luminosas margens do lago de Tiberíade – mas a nova dos seus milagres penetrara já até Enganim, cidade rica, de muralhas fortes, entre olivais e vinhedos, no país de Issacar. Uma tarde, um homem de olhos ardentes e deslumbrados, passou no fresco vale e anunciou que um novo profeta, um rabi formoso, percorria os campos e as aldeias da Galileia, predizendo a chegada do Reino de Deus, curando todos os males humanos. E, enquanto descansava, sentado à beira da Fonte dos Vergéis, contou ainda que esse rabi, na estrada de Magdala, sarara da lepra o servo de um decurião romano, só com estender sobre ele a sombra das suas mãos; e que, noutra manhã, atravessando numa barca para a terra dos Gerasenos, onde começava a colheita do bálsamo, ressuscitara a filha de Jairo, homem considerável e douto que comentava os livros na sinagoga. E, como em redor, assombrados, seareiros, pastores e as mulheres trigueiras, com a bilha no ombro, lhe perguntassem se esse era, em verdade, o Messias da Judeia, e se diante dele refulgia a espada de fogo, e se o ladeavam, caminhando como as sombras de duas torres, as sombras de Gog e de Magog – o homem, sem mesmo beber daquela água tão fria de que bebera Josué, apanhou o cajado, sacudiu os cabelos e meteu, pensativamente, por sob o aqueduto, logo sumido na espessura das amendoeiras em flor. Mas uma esperança deliciosa como o orvalho nos meses em que canta a cigarra, refrescou as almas simples: logo, por toda a campina que verdeja até Áscalon, o arado pareceu mais brando de enterrar, mais leve de mover a pedra do lagar; as crianças, colhendo ramos de anémonas, espreitavam pelos caminhos se além da esquina do muro, ou de sob o sicômoro, não surgiria uma claridade; e, nos bancos de pedra, às portas da cidade, os velhos, correndo os dedos pelos fios das barbas, já não desenrolavam, com tão sapiente certeza, os ditames antigos. Ora então vivia em Enganim um velho, por nome Obed, de uma família pontifical de Samaria, que sacrificara nas aras do monte Ebal, senhor de fartos rebanhos e de fartas vinhas, e com o coração tão cheio de orgulho como seu celeiro de trigo. Mas um vento árido e abrasado, esse vento de desolação que ao mando do Senhor sopra das torvas terras de Assur, matara as reses mais gordas das suas manadas e pelas encostas, onde as suas vinhas se enroscavam ao olmo, e se estiravam na latada airosa, só deixara, em torno dos olmos e pilares despidos, sarmentos de cepas mirradas e a parra roída de crespa ferrugem. E Obed, agachado à soleira da sua porta, com a ponta do manto sobre a face, palpava a poeira, lamentava a velhice, ruminava queixumes contra Deus cruel. Apenas ouvira, porém, desse novo rabi da Galileia que alimentava as multidões, amedrontava os demónios, emendava todas as desventuras, Obed, homem lido, que viajara na Fenícia, logo pensou que Jesus seria um desses feiticeiros, tão costumados na Palestina, como Apolónio, ou rabi Ben-Dossa, ou Simão, «o Subtil». Esses, mesmo nas noites tenebrosas, conversam com as estrelas, para eles sempre claras e fáceis nos seus segredos; com uma vara afugentam de sobre as searas os moscardos gerados nos lodos do Egipto; e agarram entre os dedos as sombras das árvores, que conduzem, como toldos benéficos, para cima das eiras, à hora da sesta. Jesus da Galileia, mais novo, com magias mais viçosas decerto, se ele largamente o pagasse, sustaria a mortandade dos seus gados, reverdeceria os seus vinhedos. Então, Obed ordenou aos seus servos que partissem, procurassem por toda a Galileia o rabi novo, e com promessa de dinheiros ou alfaias o trouxessem a Enganim, no país de Issacar. Os servos apertaram os cinturões de couro e largaram pela estrada das caravanas que, costeando o lago, se estende até Damasco. Uma tarde, avistaram sobre o poente, vermelho como uma romã muito madura, as neves finas do monte Hérmon. Depois, na frescura de uma manhã macia, o lago de Tiberíade resplandeceu diante deles, transparente, coberto de silêncio, mais azul que o céu, todo orlado de prados floridos, de densos vergéis, de rochas de pórfiro e de alvos terraços, por entre os palmares, sob o voo das rolas. Um pescador que desamarrava, preguiçosamente, a sua barca de uma ponta de relva, assombreada de aloendros, escutou, sorrindo, os servos. O rabi de Nazaré? Oh! desde o mês de Ijar, o rabi descera, com os seus discípulos, para os lados para onde o Jordão leva as águas. Os servos, correndo, seguiram pelas margens do rio, até adiante do vau, onde ele se estira, num largo remanso, e descansa, e um instante dorme, imóvel e verde, à sombra dos tamarindos. Um homem da tribo dos Essénios, todo vestido de linho branco, apanhava, lentamente, ervas salutares, pela beira da água, com um cordeirinho branco ao colo. Os servos, humildemente, saudaram-no, porque o povo ama aqueles homens de coração tão limpo, e claro, e cândido como as suas vestes cada manhã levadas em tanques purificados. E sabia ele da passagem do novo rabi da Galileia que, como os Essénios, ensinava a doçura, e curava as gentes e os gados? O Essénio murmurou que o rabi atravessara o oásis de Engaddi, depois se adiantara para além...
– Mas onde, além?
Movendo um ramo de flores roxas que colhera, o Essénio mostrou as terras de além-Jordão, a planície de Moab. Os servos vadearam o rio e debalde procuravam Jesus, arquejando pelos rudes trilhos, até às fragas onde se ergue a cidadela sinistra de Makaur... No Poço de Jacob repousava uma larga caravana, que conduzia para o Egipto mirra, especiarias e bálsamos de Gilead, e os cameleiros, tirando a água com os baldes de couro, contaram aos servos de Obed que em Gadara, pela lua nova, um rabi maravilhoso, maior que David ou Isaías, arrancara sete demónios do peito de uma tecedeira e que, à sua voz, um homem degolado pelo salteador Barrabás se erguera da sua sepultura e recolhera ao seu horto. Os servos, esperançados, subiram logo, açodadamente, pelo caminho dos peregrinos até Gadara, cidade de altas torres, e ainda mais longe até às nascentes de Amalha... Mas Jesus, nessa madrugada, seguido por um povo que cantava e sacudia ramos de mimosa, embarcara no lago, num batel de pesca e, à vela, navegara para Magdala. E os servos de Obed, descoroçoados, de novo passavam o Jordão, na Ponte das Filhas de Jacob. Um dia, já com as sandálias rotas dos longos caminhos, pisando já as terras da Judeia Romana, cruzaram um fariseu sombrio, que recolhia a Efraim, montado na sua mula. Com devota reverência detiveram o homem da Lei. Encontrara ele, por acaso, esse profeta novo da Galileia que, como um deus passeando na Terra, semeava milagres? A adunca face do fariseu escureceu enrugada e a sua cólera retumbou como um tambor orgulhoso:
– Oh escravos pagãos! Oh blasfemos! Onde ouvistes que existissem profetas ou milagres fora de Jerusalém? Só Jeová tem força no seu Templo. De Galileia surgem os néscios e os impostores...
E, como os servos recuavam ante o seu punho erguido, todo enrodilhado de dísticos sagrados, o furioso doutor saltou da mula e, com as pedras da estrada, apedrejou os servos de Obed, uivando «Racca! Racca!» e todos os anátemas rituais. Os servos fugiram para Enganim. E grande foi a desconsolação de Obed, porque os seus gados morriam, as suas vinhas secavam e, todavia, radiantemente, como uma alvorada por detrás de serras, crescia, consoladora e cheia de promessas divinas, a fama de Jesus da Galileia.
Por esse tempo, um centurião romano, Públio Sétimo, comandava o forte que domina o vale de Cesareia, até à cidade e ao mar. Públio, homem áspero, veterano da campanha de Tibério contra os Partos, enriquecera durante a revolta de Samaria com presas e saques, possuía minas na Ática e gozava, como favor supremo dos deuses, a amizade de Flaco, legado imperial da Síria. Mas uma dor roía a sua prosperidade muito poderosa como um verme rói um fruto muito suculento. Sua filha única, para ele mais amada que vida ou bens, definhava com um mal subtil e lento, estranho mesmo ao saber dos esculápios e mágicos que ele mandara consultar a Sídon e a Tiro. Branca e triste como a lua num cemitério, sem um queixume, sorrindo, palidamente, a seu pai definhava, sentada na alta esplanada do forte, sob um velário, alongando saudosamente os negros olhos tristes pelo azul do mar de Tiro, por onde ela navegara de Itália, numa galera enfestoada. Ao seu lado, por vezes, um legionário, entre as ameias, apontava, vagarosamente, ao alto, a flecha, e varava uma grande águia, voando de asa serena, no céu rutilante. A filha de Sétimo seguia um momento a ave torneando até bater morta sobre as rochas; depois, mais triste, com um suspiro, e mais pálida, recomeçava a olhar para o mar. Então, Sétimo, ouvindo contar, a mercadores de Chorazim, deste rabi admirável, tão potente sobre os espíritos, que sarava os males tenebrosos da alma, destacou três decúrias de soldados para que o procurassem por Galileia, e por todas as cidades da Decápole, até à costa e até Áscalon. Os soldados enfiaram os escudos nos sacos de lona, espetaram nos elmos ramos de oliveira, e as suas sandálias ferradas apressadamente se afastaram, ressoando sobre as lajes de basalto da estrada romana que desde Cesareia até ao lago corta toda a tetrarquia de Herodes. As suas armas, de noite, brilhavam no topo das colinas, por entre a chama ondeante dos archotes erguidos. De dia, invadiam os casais, rebuscavam a espessura dos pomares, esfuracavam com a ponta das lanças a palha das medas; e as mulheres, assustadas, para os amansar, logo acudiam com bolos de mel, figos novos e malgas cheias de vinho, que eles bebiam, de um trago, sentados à sombra dos sicômoros. Assim correram a Baixa Galileia e, do rabi, só encontraram o sulco luminoso nos corações. Enfastiados com as inúteis marchas, desconfiando que os Judeus sonegassem o seu feiticeiro para que os Romanos não aproveitassem do superior feitiço, derramavam com tumulto a sua cólera, através da piedosa terra submissa. À entrada das aldeias pobres detinham os peregrinos, gritando o nome do rabi, rasgando os véus às virgens. E, à hora em que os cântaros se enchem nas cisternas, invadiam as ruas estreitas dos burgos, penetravam nas sinagogas, e batiam, sacrilegamente, com os punhos das espadas nas Thebahs, os santos armários de cedro que continham os Livros Sagrados. Nas cercanias de Hébron, arrastaram os solitários pelas barbas para fora das grutas, para lhes arrancar o nome do deserto ou do palmar em que se ocultava o rabi; e dois mercadores fenícios que vinham de Jope com uma carga de malobatro, e a quem nunca chegara o nome de Jesus, pagaram por esse delito cem dracmas a cada decurião. Já a gente dos campos, mesmos os bravios pastores de Idumeia, que levam as reses brancas para o Templo, fugiam espavoridos para as serranias, apenas luziam, nalguma volta do caminho, as armas do bando violento. E da beira dos eirados, as velhas sacudiam como taleigos a ponta dos cabelos desgrenhados e arrogavam sobre eles as Más Sortes, invocando a vingança de Elias. Assim, tumultuosamente, erraram até Áscalon: não encontraram Jesus: e retrocederam, ao longo da costa, enterrando as sandálias nas areias ardentes. Uma madrugada, perto de Cesareia, marchando num vale, avistaram sobre um outeiro um verde-negro bosque de loureiros, onde alvejava, recolhidamente, o fino e claro pórtico de um templo. Um velho, de compridas barbas brancas, coroado de folhas de louro, vestido com uma túnica cor de açafrão, segurando uma curta lira de três cordas, esperava, gravemente, sobre os degraus de mármore, a aparição do Sol. Debaixo, agitando um ramo de oliveira, os soldados bradaram pelo sacerdote. Conhecia ele um novo profeta que surgira na Galileia e tão destro em milagres que ressuscitava os mortos e mudava a água em vinho? Serenamente, alargando os braços, o sereno velho exclamou por sobre a rociada verdura do vale:
– Oh romanos! pois acreditais que em Galileia ou Judeia apareçam profetas consumando milagres? Como pode um bárbaro alterar a ordem instituída por Zeus?... Mágicos e feiticeiros são vendilhões, que murmuram palavras ocas, para arrebatar a espórtula dos simples... Sem a permissão dos imortais nem um galho seco pode tombar da árvore, nem seca folha pode ser sacudida na árvore. Não há profetas, não há milagres... Só Apolo Délfico conhece o segredo das coisas!
Então, devagar, com a cabeça derrubada, como numa tarde de derrota, os soldados recolheram à fortaleza de Cesareia. E grande foi o desespero de Sétimo, porque sua filha morria, sem um queixume, olhando o mar de Tiro; e todavia a fama de Jesus, curador dos lânguidos males, crescia, sempre mais consoladora e fresca, como a aragem da tarde que sopra do Hérmon e, através dos hortos, reanima e levanta as açucenas pendidas.
Ora entre Enganim e Cesareia, num casebre desgarrado, sumido na prega de um cerro, vivia, a esse tempo, uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos de enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. Também a ela a doença a engelhara dentro dos trapos nunca mudados, mais escura e torcida que uma cepa arrancada. E, sobre ambos, espessamente, a miséria cresceu como o bolor sobre cacos perdidos num ermo. Até na lâmpada de barro vermelho secara, há muito, o azeite. Dentro da arca pintada não restava grão ou côdea. No Estio, sem pasto, a cabra morrera. Depois, no quinteiro, secara a figueira. Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na Terra Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento! Um dia, um mendigo entrou no casebre, repartiu do seu farnel com a mãe amargurada e, um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse rabi que aparecera na Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso reino, de abundância maior que a corte de Salomão. A mulher escutava, com olhos famintos. E esse doce rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah! esse doce rabi! quantos o desejavam, que se desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judeia, como o sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas, para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. Obed, tão rico, mandara os seus servos por toda a Galileia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas a Enganim; Sétimo, tão soberano, destacara os seus soldados até à costa do mar, para que buscassem Jesus o conduzissem, por seu mando, a Cesareia. Errando esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obed, depois os legionários de Sétimo. E todos voltavam, como derrotados, com as sandálias rotas sem ter descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio, se escondia Jesus. A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar de uma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse rabi que amava as criancinhas, ainda as mais pobres, sarava os males ainda os mais antigos. A mãe apertou a cabeça esguedelhada:
– Oh! filho e como queres que te deixe, e me meta aos caminhos à procura do rabi da Galileia? Obed é rico e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Corazim até ao país de Moab. Sétimo é forte e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde o Hébron até ao mar! Como queres que te deixe?! Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora connosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota?
A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou:
– Oh! mãe! Jesus ama todos os pequenos. E eu ainda tão pequeno e com um mal tão pesado e que tanto queria sarar!
E a mãe, em soluços:
– Oh! meu filho, como te posso deixar?! Longas são as estradas da Galileia e curta a piedade dos homens. Tão rota, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado e me apontaria a morada do doce rabi. Oh! filho! Talvez Jesus morresse... Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.
De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou:
– Mãe, eu queria ver Jesus...
E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança:
– Aqui estou.
Eça de Queiroz, Contos
Neste momento e com este conto, eu quero recordar a querida e doce Professora, D. Maria Amália que, no Liceu da Castelo Branco, me tratava por Menino. Como aos outros Meninos da cidade. Leu este conto para nós, Turma E do 1º. ano, na véspera do 10 de Junho de 1955, na última aula que tive com ela. Uma voz melodiosa, uma encantadora figura de Mãe, sem ter filhos naturais. Nunca a esqueci! Soube, depois, que também me recordou, por muitos anos, aqui pela Grande Lisboa.
Feliz Natal! Jesus nasce!!!

sábado, dezembro 12, 2009

Parabéns a Você!!!

Tomás, nosso Neto,
Para nós o ano passou num instante. Na nossa idade, os dias fogem, em louca correria. Para ti e para os teus Papás, o tempo parece coxo: deste algum trabalho, eles criaram expectativas a ver quando é que tu fazias isto ou aquilo; a ansiar pelo primeiro dentinho e depois mais outro e outro; a desejar que tu alcançasses mais este ou aquele patamar dos muitos que enriqueceram estes primeiros 365 dias da tua vida. Resumindo, não lhes deste pausas, pois todos os teus momentos lhes encheram a sua vida. E da nossa também ficaste a fazer parte muito importante, aqui bem juntinho de nós, ou aí, bem longe. Mas, para quem se quer bem, "do longe se faz perto" e nós conseguimo-lo, de verdade, em momentos bem queridos.
Ora, aqui estão os avós com conversa que tu não entendes, mas que poderás ler daqui a uns aninhos mais, quem sabe, quando já não te pudermos falar.
Porém, o dia é de festa e aqui vão os nossos parabéns, com pedidos ao Pai do Céu para que te abençoe e te cumule de muitas graças, para alegria e felicidade da tua Mamã e do teu Papá. E também nossa!
Parabéns, Tomás.
Mil e um beijinhos dos que gostam muito, muito de ti.
Avós,
Leonilde e António

domingo, novembro 29, 2009

Rapazes, isto é "comunismo"!!!

Carta a um Amigo,
Decorria o ano de 1960 e, em Castelo Branco, no mês de Fevereiro, se bem me lembro, caiu um belo nevão. Cidade fria, como bem sabe, era mais dada a geadas do que à neve, pelo que a malta, à saída do Liceu, aproveitou para fazer umas bolas da dita cuja para atirar aos outros, nomeadamente às garinas. A PSP, que tinha muito menos que fazer do que hoje, pois havia muito menos bandidos, aproveitou para avançar em "cima" dos estudantes, sob o pretexto de que "estavam" a perturbar a ordem pública e afincou, nalguns rapazes, uma belas bordoadas. O Reitor, Dr. José Catanas Diogo, é que também não esteve com meias medidas e toca arengar ao pessoal "Rapazes, isto é COMUNISMO! Isto é COMUNISMO!!!" Julgo que nem ele sabia o que era Comunismo e a malta ainda ficou a saber menos. Na certeza de que, se o "comunismo" era atirar bolas de neve às gaiatas, então todos queríamos ser "comunistas"!!!
Mas a expressão "pegou" e, durante semanas, na galhofa, a frase favorita da malta era "Rapazes, isto é comunismo!!!" Uma risada geral, inconsciente e feliz, que até ajudou a esquecer as nódoas negras dos cassetetes dos PSP. E o Dr. Catanas Diogo deve ter tapado os ouvidos muitas vezes.
Ora, meu caro Amigo, as imagens do "santuário" no caminho do Sul do nosso País, fazem-me pensar que, se o Dr. Catanas por lá passasse e fosse tão ateu como era convicto "situacionista" diria, sem dúvida, "Portuguesas e portugueses, isto é 'inquisicionismo', isto é 'vaticanismo'!!!!!!!!!!!!!!!!!"
Pois bem: o meu querido Amigo é uma pessoa inteligente e sabe perfeitamente que há, por sinal, "inquisição" em Portugal, mas não é a da Igreja. O Sócrates é testemunha e "vitima". E também tem a certeza de que, no Vaticano, nem sabem onde fica o Alentejo, quanto mais o referido "santuário". Assim, só por "cegueira saramaguiana" se pode ver, naquilo que nos que mostrou nas suas simplórias imagens, a mão da Igreja. Como a cegueira que levou o Dr. Catanas Diogo, distinto membro da LP e da MP, a ver "comunistas" nos alegres estudantes do Liceu D. Nuno Álvares Pereira, que brincavam com bolas de neve.
Só lhe agradeço ter-me avivado a memória e, assim, no meu blog, vai ser acrescentada uma nova mensagem de um assunto divertido, que andava pelo esquecimento.
Abração deste que o estima, mas que tem o "defeito" de não estar sempre de acordo consigo, pois tudo tem limites e do direito à diferença eu não abdico. Arda o que arder. Haverá que apontar ao Vaticano coisas bem mais graves, mas não o patrocínio dessa simplória crendice dos populares lá das bandas do sul do Alentejo, a entrar no Algarve. Ou será já no Algarve? Acho exagerado os adjectivos por si aplicados aos "crentes", pois a Liberdade tem consequências. Uma delas é, fortemente, a tolerância para os "desvios" dos outros - e quem os não tem?! - que melhor se "converterão" a quem discordar do que fazem ou do que que crêem com diálogo do que com "chavões" vanguardistas.
Seu Amigo dedicado,
António Serrano

quinta-feira, novembro 26, 2009

A corja

Na fragilidade de um poema
Feito com versos de vento e água,
Desfaço em pedaços mil dilemas,
Liberto minha revolta e mágoa.
Como quem descrê no que acredita,
Por já não crer em nada e ninguém,
Dou meus frutos, sou árvore maldita,
À corja, oxalá a envenenem bem.
Perguntei ao vento: - Aonde me levas?
Olhou-me com dor e disse a sorrir:
- Levo-te de volta à noite das trevas,
Onde não há presente nem porvir.
- Que lugar é esse, que noite é essa
Onde tu, ó vento, me queres levar?!
- É o reino das falsas promessas
E mentiras, de quem quer governar.

Não vi rosmaninho nem alfazema,
Das rosas só restavam os espinhos.
Não vi a poesia, menos poemas,
tojos, urzes e outros maninhos.
Não vi sorrir o rosto das crianças,
Só velhos com tristeza no olhar,
E loucos e doutos sem esperança,
Nem sol d’ Abril nem Lua ou luar.
Não vi rios nem as verdes campinas,
Nem ouvi os rouxinóis no arvoredo…
Por entre uma fria e densa neblina,
Só se ouviam pragas e gritos de medo.

Perguntei ao vento que me guiava:
- Diz-me, meu amigo, quem grita assim?!
Porém ele não falava, calava
A verdade por ter pena de mim.
Mas perante a minha insistência
O vento acabou por me dizer:
- Amigo, os lobos não têm clemência
Quando está em causa o poder.
E de súbito, da neblina cerrada
Saiu a mais faminta alcateia…
Mil lobos, de fauces escancaradas,
Que devoraram mil anhos à ceia.
Eram lobos anafados, lustrosos.
Era uma insaciável alcateia…
Arrotando forte os mais poderosos,
E uivando os mais fracos por ceia.

Eis um poema só de raiva feito
Onde vos dou versos como poção…
Antídoto algum lhe tire o efeito,
Morram os lobos que nem lobos são.
São só versos de amarga revolta…
Malditos sejam se os lerdes em vão.
Deixo a minha raiva correr à solta,
Ergo a voz e à corja digo: - Não.


Homem da Serra
Zeca, volta, volta... "Eles comem tudo!"

Saramago, esse desconhecido...

CARTA DO CANADÁ
Fernanda Leitão

SEM COMPLEXOS NEM PRECONCEITOS

Seguramente, foi em 1959 que assentei arraiais na Brasileira do Chiado, no grupo pontificado por Tomaz de Figueiredo, Jorge Barradas, Abel Manta e Almada-Negreiros, onde fui dar pela mão de artistas plásticos cujo vasto atelier passou a ser, também, meu poiso habitual.Meu de muitas outras pessoas.
Em tardes de inverno, com a lareira acesa e tomando chá, por ali passava a dizer poemas Vasco Lima Couto e, a inundar o espaço com a sua voz inesquecível, Eunice Muñoz. Gente do teatro, do cinema, da música, das artes plásticas, do jornalismo, das letras, ali conviviam com serenidade e gosto.
A escritora Isabel da Nóbrega começou a ser habitual e depressa se tornou uma amiga dos donos do atelier. Senhora de bom berço e fino trato, inteligente e culta, bem instalada na vida, caíu numa cilada do demónio. Apaixonou-se por um zé ninguém, nem sequer bonito, muito menos simpático e bem educado, que olhava tudo e todos de nariz empinado, numa pseudo-superioridade de quem tem contas a ajustar com a vida, quezilento e muito chato. Falava como um pregador de feira e era intragável. Mas, em atenção à Isabel, lá íamos aturando o José Saramago.
Para mim, que sou péssima, foi ponto assente: aquele não a ia fazer limpa, era um depósito de ódio recalcado. Foi por isso que não me admirei nada quando o vi director do Diário de Notícias, a mando do Partido Comunista, onde, da noite para o dia, lançou ao desemprego 24 jornalistas, dos da velha escola, dos que escrevem com pontos e vírgulas, deixando-os, e às famílias, sem pão. Tambem não fiquei minimamente surpreendida quando soube que abandonou Isabel da Nóbrega, que tanto fez por ele, para alvoroçadamente casar com uma espanhola que foi freira e tem vastos conhecimentos no mundo da política e das letras. Para mim, estava tudo a condizer com a figura.
Cá de longe soube que publicava livros e vendia muito. Não me aqueceu nem arrefeceu, porque nunca li nada escrito por ele nem tenciono perder tempo com isso. Não me apetece, e está tudo dito. Nem o Nobel que lhe deram me impressionou, porque já vi o Nobel ser dado sem critério algumas vezes. Acho mesmo que o prémio está a ficar muito por baixo.
E agora, o homenzinho da Golegã a chamar nomes a Deus, a insultar a Bíblia nuns raciocínios primários de operário em roda de tasca. Dizem que o fez por golpe publicitário. Talvez. Acho que é capaz disso e de muito mais. No entanto, creio que, no meio do aranzel, apenas houve uma pessoa que lhe fez o diagnóstico certo: António Lobo Antunes, numa magistral entrevista dada à RTP, há dias, respondeu a Judite de Sousa, que o interrogava sobre as tiradas de Saramago, que essas vociferações contra Deus lhe tinham feito medo. E adiantou: “tenho medo de chegar à idade dele assim, sem senso crítico”. Está tudo dito. É mais um como há tantos anciãos de tino perdido em Portugal. É deixá-lo andar. A mim tanto se me dá.
(Com a devida vénia!!!)

segunda-feira, novembro 23, 2009

Momento de poesia: Musa Beiroa

Magna Assembleia
Reunidas em soleníssima sessão
As Musas antigas e modernas também,
Discutem, fervorosamente, se sim ou não,
Me fazem poeta ou só Zé-ninguém.

Vindas de Norte, Sul, Oeste e de Leste,
Gregas, troianas, bretãs, até romanas,
Nunca foi visto concílio como este
Para discutir uma causa Lusitana.

Quiseram as Tágides, mais as do Mondego,
E a pastoril Beiroa, todas simples mas belas,
Avisarem-me baixinho, quase em segredo,
Que não seria fácil a guerra com elas.

Começou Euterpe, a rainha do canto,
Falas melodiosas, muito engraçada:
- Nada lhe darei, digo, por enquanto:
Nem lira, nem harpa, nem voz bem timbrada.

Logo a bela Serrana se ergueu por mim,
Simples resposta, excelente intervenção...
- Desculpai, Senhora, não será só assim
Por ele ser apenas um pobre beirão?!

- Não vos amofineis, insensata donzela,
Mas vejo a coisa de maneira diferente...
É preciso ter muito siso e cautela
Se desconhecemos quem temos em frente.

As Ninfas e as Tágides ficaram caladas;
Mal me conhecem, não ousam falar.
Mas a pastoril Beirã não cede por nada,
E a dona da música teve que se calar.

Diz Melpómene, em tom conciliador:
- Não façamos disto uma grega tragédia...
Se o rapaz não for músico, nem cantor,
Poderá dedicar-se então à comédia!

- Quereis passá-lo para mim? - pergunta Tália
Mostrando uma grande animosidade...
- Não conheço gente que não seja de Itália;
Não tem p'rá comédia jeito nem idade.

As Ninfas e as Tágides não se contiveram
Agarrando Tália pelo longo cabelo...
- Nunca os Romanos, os Lusos venceram,
Se ainda o não sabes, vais agora sabê-lo.

Gerou-se uma balbúrdia e tal confusão!...
Umas para um lado e outras para outro...
- Senhoras meninas, que é isto?... Então?!
Tanta discussão só por causa de um louco?!

Mas não gostou minha formosa estrela,
Que a elegante Terpsícore me chamasse louco,
Levantando-se de um salto, foi-se ali a ela,
E, se a não fez dançar, faltou muito pouco.

Falou, então, Clio, mãe da eternidade,
Num tom conciliatório e até cortês:
- Façamo-lo poeta; que cante só a saudade,
O doce sentimento do Povo português.

Com blusa decotada e seio provocante,
A fascinante Erato sabe bem o que quer,
De seus olhos verdes saem raios brilhantes,
Vê-se bem que não é Musa qualquer.

Veste de maneira ousada, atrevida;
Uma mini-saia bem acima do joelho.
Não sei se meia nua, se meia vestida,
Fazendo esquecer o mais sábio conselho.

Passemos adiante, deixemo-la p'ra logo,
Falemos apenas do que aqui se passou...
Acendeu-me nos lábios desejos de fogo,
Se mais não conseguiu, foi porque não tentou.

Não porque o não quisesse, ou desejasse,
Mas sendo a brejeira, linda filha de Zeus,
Travou-me a razão, antes que me queimasse,
Evitando colar meus lábios nos seus.

Ela sabe que a sua beleza inebria,
E diz, entre gestos de luxúria lasciva:
-Vem aos meus braços, se amas a poesia,
Ou também tens medo de beijar uma diva?

Gozando com a provocante atitude:
- Tu queres ser poeta?!... Pois sê-o então.
Não te gabo a sorte, mas fiz o que pude
Ao dar-te os dons de um pateta poltrão.

Pede às Ninfas e Tágides seu auxílio,
(E fingindo beijar-me em provocação...)
- Nunca serás Homero, muito menos Virgílio,
Não passarás, meu pateta, de rude Beirão.

Ergue-se, felina, a Leoa Lusitana,
Ninfas e Tágides se lhe juntam, em protesto.
- Quem sois vós, gregas, troianas e romanas,
Senão ralé, plebe vulgar, filhas de incesto?

Querendo chamar toda a gente à razão,
Disse Calíope, com muita indulgência:
- Não, nunca será só um poeta poltrão,
Eu lhe concedo um pouco de eloquência.

Mas os ânimos não ficaram sossegados,
Porque Terpsícore de modo contrafeito
Declarou: - Vou dar-lhe pés tão pesados
Que para a dançarino nunca terá jeito.

- Desconheceis o querer e força deste Povo?
( Gritou a Beiroa, com um fulgente olhar.)
- Venceu o mundo velho, construiu um novo,
Aqui tereis que aprender e não ensinar.

Será poeta, tudo o que ele desejar:
Guerreiro, lavrador, marinheiro, pastor.
Sábio, louco e até santo do altar,
Que o Povo Lusitano não conhece senhor.

Foram-se embora as musas de outrora,
Rabo entre as pernas e o bico calado.
Certamente, já aprenderam bem agora,
Que e a estirpe Lusa não é pau-mandado.

Ninfas e Tágides, minha Musa Beiroa,
Cantai a Gente Lusa, o Povo laureado.
Calem as antigas, por muito que lhes doa,
O seu canto roufenho e tão desafinado.

Mas aquela diva de olhos fascinantes
Tirava do sério um homem qualquer...
Há lindíssimas musas em belas amantes,
E lábios de fogo em muita mulher.

A formosa Erato com sua beleza,
Deixou em mim a suave recordação...
Ao partir, deixou-me alguma tristeza,
Também algum do seu poder e condão.

É quase certo, mas não posso afirmar,
Não sei se é real, se só fantasia,
Mas muitas vezes sinto que ela a brincar,
Vem ensinar-me a escrever poesia.

Linda, linda como o um mar das espigas,
É ver (não sei se me cale, ou se vos conte)
A mais generosa, a mais leal das amigas,
A minha Musa Beiroa, ao voltar da fonte.

À pequenina Leonor.
Não é Beiroa, mas de lá lhe venha a beleza, porque lindas são as moças Serranas.
Do tio-avô Fernando

quarta-feira, novembro 18, 2009

Nasceu! Bem vinda!!!

Eram 18h 22m, quando chegaste a este Mundo, à nossa companhia. Bem vinda sejas, querida Leonor.
Os teus Pais, os teus Avós, os teus Tios, os teus Primos estão bem felizes por nos quereres alegrar, enriquecer o nosso dia a dia. Tu, linda Menina, podes ter a certeza de que tudo faremos para te tornar a vida feliz. Assim, Deus nos ajude, pois é um trabalho tão difícil que só Ele - Caminho Verdade e Vida! - nos pode dar os meios para realizarmos tão empolgante Missão. Olha, ainda não nos conheces, mas já te amamos muito. Vai ser bom convivermos e ver-te crescer. Vem! Nós ansiávamos pela tua chegada. Escolhi uma doce canção de embalar que os teus Papás vão aprender para te adormecer... quando estiveres com "insónias!!!! Ah! Ah! Ah!

A Bíblia que Saramago não leu ou "Ensaio sobre a cegueira"2

Evangelho segundo S. Lucas 19,1-10. Tendo entrado em Jericó, Jesus atravessava a cidade. Vivia ali um homem rico, chamado Zaqueu, que era chefe de cobradores de impostos. Procurava ver Jesus e não podia, por causa da multidão, pois era de pequena estatura. Correndo à frente, subiu a um sicómoro para o ver, porque Ele devia passar por ali. Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe: «Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casa.» Ele desceu imediatamente e acolheu Jesus, cheio de alegria. Ao verem aquilo, murmuravam todos entre si, dizendo que tinha ido hospedar-se em casa de um pecador. Zaqueu, de pé, disse ao Senhor: «Senhor, vou dar metade dos meus bens aos pobres e, se defraudei alguém em qualquer coisa, vou restituir-lhe quatro vezes mais.» Jesus disse-lhe: «Hoje veio a salvação a esta casa, por este ser também filho de Abraão; pois, o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido.»

sábado, novembro 14, 2009

Obrigado, Zé!

Meu Caro Zé,
Venho agradecer-te a maneira principesca com que me acolheste, mimaste, hoje. Que belas horas passei na tua companhia, aí por Santo André e Sines!!!
Como te disse, em meu desabono, mal conhecia essa linda zona do nosso Distrito. Apenas por aí passara duas ou três vezes, terão passado cerca de 25 anos.
Segui o itinerário que me indicaste. Gostei de atravessar uma boa parte do nosso Alentejo, onde os extensos sobreirais me fascinaram. Alguns deles bem tratados, com as terras lavradas, provavelmente para uma maior produtividade e defesa contra incêndios. De gente que entende que é preciso semear para colher, investir para receber. Já entre Grândola e Santiago me pareceu que o aspecto das árvores não era saudável, porventura em resultado da muita poluição atmosférica proveniente das indústrias instaladas nos arredores de Sines, anos atrás. O piso da estrada até Grândola está em defeciente estado, mas o percurso pelo IP8 merece elogios.
Encontrar-te, depois de tantos anos, quando foste Criança, lá em Penamacor foi uma vivência inesquecível. Passar aquelas horas na tua companhia, em contacto com a tua alegria de viver, foi um privilégio que muito te agradeço. Não merecia tanto, com sinceridade o digo.
As enguias - o ensopado e a caldeirada, que fartura!!! - estavam uma delícia. Não mais vou esquecer aquela encantadora localidade, Deixa o Resto, e a história bem engraçada que deu origem a tal designação. Mas nós não deixámos resto, não. Podem chamar-nos gulosos, mas seria um desperdício, quase um pecado. Em oposição tivemos de "sofrer" de gula...
Surpresa, surpresa foi a visita ao teu apartamento: quem diria que um solteirão pode ter uma casa tão bem arrumada e com tantas e tão boas recordações das tuas muitas viagens e aventuras por quase 50 países deste nosso Mundo?!
Aqui ficam os meus parabéns e a expressão da minha admiração. Que havia de repetir-se no apartamento de Sines, mais "despido", mas com aquela linda varanda e a soberba vista sobre o mar que aqui se pode apreciar.
A mota dos teus (e meus) encantos não podia ficar sem visita. Estupenda. Também na garagem há que ressaltar que tudo estava no seu lugar, revelando-se a arrumação como uma tua grande virtude. Ah! Meu maroto, a carrinha é que foi cá uma surpresa!!! És um verdadeiro artista, no sentido literal da palavra. Fico feliz, por ti. Mas há uma frase que não me vai esquecer e que me faz lembrar os olhos vivos e desafiadores da Criança que foi meu Aluno: "Entre ser rico e ser livre... escolhi a Liberdade". Só de ti, José Salgueiro Cunha de Almeida, eu poderia aprender mais esta. No fundo, é um caminho evangélico, pois também Jesus Cristo nos alerta para a prisão que o apego aos bens materiais constitui. No entanto, meu caro Amigo, posso dizer-te que há bens pelos quais vale a pena ser "anilhado". O Amor de uma Mulher, um deles, para exemplo...
O passeio que me ofereceste, por Sines e zona indústrial, com destaque para a enorme Empresa em que trabalhas, encheu-me de satisfação. Assim, com um cicerone tão cativante e bem-humorado, foi ver as horas a passarem, num instante. Ouvindo histórias e mais histórias de um Aventureiro generoso, um coração de oiro.
A hora da despedida chegou, com o escurecer. Fica-me na memória um gesto final que não sei como te agradecer: guiaste-me por aquelas ruas que eu nunca percorrera, chegando ao "cúmulo" de me conduzires até à estrada que havia de trazer-me a casa. Obrigado, caro Zé, meu Amigo.
Um dia destes será por aqui. Para minha enorme satisfação.
Abraça-te, com estima, aquele que te ensinou algumas coisas, quando eras Criança e a quem tu deste uma grande lição de vida e humanidade, no espaço de poucas horas.
O teu velho professor.

sexta-feira, novembro 13, 2009

A Bíblia que Saramago não leu ou "Ensaio sobre a cegueira"

Livro de Sabedoria 7,22-30.8,1.
Com efeito, há nela um espírito inteligente e santo, único, múltiplo e subtil, ágil, penetrante e puro, límpido, invulnerável, amigo do bem e perspicaz, livre, benéfico e amigo dos homens, estável, firme e sereno, que tudo pode e tudo vê, que penetra todos os espíritos, os inteligentes, os puros e os mais subtis. A sabedoria é mais ágil que todo o movimento e por sua pureza tudo atravessa e penetra. Ela é um sopro do poder de Deus, uma irradiação pura da glória do Omnipotente, pelo que nada de impuro entra nela. Ela é um reflexo da luz eterna, um espelho imaculado da actividade de Deus e uma imagem da sua bondade. Sendo uma só, tudo pode; permanecendo em si mesma, tudo renova; e, derramando-se nas almas santas de cada geração, ela forma amigos de Deus e profetas, pois Deus só ama quem vive com a sabedoria. Ela é mais radiante que o sol, e supera todas as constelações; comparada com a luz, sai vencedora, pois a luz dá lugar à noite, mas sobre a sabedoria não prevalece o mal. Ela estende-se com vigor de uma extremidade à outra e tudo governa com bondade.

terça-feira, novembro 10, 2009

A boleia

Penamacor. Final dos anos 60. As aulas terminavam pelas 16 horas e as tardes eram mais que longas. Estava decidido. A seguir à "escola" iria a Aldeia visitar os meus Pais. No Fiat 850. Um "luxo". O caminho era curto e até dava para me alegrar o resto do dia. Assim, fui nas calmas. A Primavera, já bastante adiantada, em pleno mês de Maio. Naquele tempo, todo o bocadinho de terra arável havia sido cultivado ou servia para que pudessem crescer as pastagens de que os muitos rebanhos então existentes se alimentavam. E viam-se ovelhas e cabras por aquelas quebradas, com o dlão-dlão, dlim-dlim dos seus chocalhos e campainhas, pastor atento, encostado ao cajado, o cão fiel a seu lado. Era ainda tempo de muito trabalho e pouco proveito. Aqui e além, as mondadeiras labutavam em volta dos milhos e os centeios preparavam-se para mudar do verde deslumbrante, que "fugira" a bom "fugir" por encostas e vales, no mês de Abril que se fora, para o tom "cor de palha" que os havia de levar às ceifas. As hortas precisavam de ser regadas, umas com água puxada dos poços, a pulso, no caldeiro pendurado no varal da velha "burra", outras com a água tirada nos alcatruzes, fazendo-se ouvir o "tlem-tlem" com que o bater do "travão" da nora embalava a mansa burra que, de olhos tapados, ia percorrendo o seu caminho tão curto, mas sem fim. Parei, por instantes, na ponte da ribeira das Taliscas. Um local bem aprazível, com o verde dos salgueiros, das faias, dos plátanos, dos freixos e dos choupos. Ouvia-se, a pouca distância, o "barulho" de um motor que de lá puxava ainda a água para matar a sede do batatal que, ali mesmo, na fértil margem, tanto prometia.
Embalado nestas vistas tão nostálgicas de um tempo em que eu era homem, depressa cheguei a Aldeia do Bispo, com a "Farmácia Milongo", do simpático e saudoso Dr. Ildefonso, ali mesmo, na Lameira, à beira da estrada.

Por um destes acasos que só acontecem uma vez na vida, vejo de lá sair o Ti António "Baratinho", um dos meus conterrâneos mais castiços e divertidos, a morar mesmo lá pertinho dos meus Pais. Era um tempo em que não se tinha medo de dar boleia nem de a apanhar. Em "a talhe de foice" devo dizer que fiz uns milhares de kms nos carros de outros e, ainda hoje, se for sozinho, não sou capaz de deixar alguém a pé, na berma da estrada. Tendo a consciência do que tal atitude representa...

Mas voltemos ao fio da história. Mal o avistei, parei e perguntei-lhe:

- Ó Ti António, então o que faz por aqui? Vou à nossa Aldeia... Quer boleia?

- Ó Professor, nem sabe quanto lhe agradeço. A minha Lurdes está doente e vim aqui buscar uns comprimidos...

- Vá, entre, que chegamos num instante!

Retomada a marcha, aí vamos nós, numa de boa disposição. Sendo uma pessoa de pouca instrução, sem saber ler nem escrever, era de uma educação e simpatia a toda a prova. Usava a L.P. com muita graça e devo confessar que ainda dei umas boas gargalhadas, pois ele sabia histórias de conterrâneos nossos, verdadeiras ou inventadas e lidava com as palavras como poucos, para as recontar as vezes que fossem precisas. Com habilidade. Talvez só igualada pela de um seu irmão, o José que, tempos depois, me fez rir um dia inteiro, quando fomos companheiros de vindima... Cá estou eu "a variar"...

Ficando na mesma rua para onde eu me dirigia, apeou-se junto da sua casa e os remédios devem ter dado o efeito para que foram comprados.

O tempo passa num instante e, dias depois, voltando a visitar os meus Pais, quem é que encontro, ali, "à mão de semear", no Largo do Rato? O Ti António "Baratinho"...

Simpatia com simpatia se paga. Parei.

- Olá, Ti António, boa tarde! Então a sua Lurdes já está boa?

Uma gargalhada, como só ele era capaz de dar, ecoou, naquele Largo. Depois, quase sem se poder conter, exclamou:
- Ó Professor.... a minha Lurdes .... já está boa. Mas a sua boleia ... é que me vontade de rir!!!
Francamente, eu não percebia onde ele queria chegar. E ria, ria... Depois, com alguma dificuldade, consegui entender o que ele ia dizendo:

- Então... não quer saber??? Com a vontade de andar de carrinho.... esqueci-me que tinha levado a burra e deixei-a lá ficar???!!!

Tive de sair. O insólito da situação obrigava a tal. E rimos os dois... até nos cansarmos. Para espanto de alguns "Cucos" que iam passando, sem perceberem o porquê daquele "desaforo"...

segunda-feira, novembro 02, 2009

No olival

A moda da azeitona

Azeitona galeguinha,
Quando vai para o lagar,
É como a moça solteira,
Quando se vai a casar.
Ólóai... larilólela! Ólóai... larilóló!!!


Azeitona cordovil,
Deita azeite mais claro,
Para ir alumiar,
À Senhora do Rosário.
Ólóai... larilólela! Ólóai... larilóloó!!!Azeitona galeguinha,
O rouxinol a devora,
Pega nela com o bico,
Bate a asa vai-se embora.
Ólóai... larilólela! Ólóai... larilóló!!!

Azeitona galeguinha,
Apanhada uma a uma,
Estes rapazes de agora,
Não têm "planta" nenhuma.
Ólóai... larilólela! Ólóai... larilóló!!!

A oliveira é paz,
A macieira ciência,
O amor fora da terra,
Faz perder a paciência.
Ólóai... larilólela! Ólóai... larilóló!!!!!
A moda da azeitona era cantada pelos ranchos que, ao "quinto", com frio, chuva e muito trabalho, iam recolhendo os frutos da oliveira para encherem os enormes potes de azeite dos grandes proprietários e de que receberiam uns litros para, bem "governado", ir dando para temperar as comidas e acender as candeias.
Esta moda tomava uma especial alegria ao anoitecer do dia do encerramento dos trabalhos, nomeadamente da Casa Maior, quando, o som da concertina acompanhava as muitas e afinadas gargantas que, em coro, cantavam as quadras que acima se transcrevem, para fazerem a entrega do ramo de oliveira, enfeitado com flores e laranjas, aos donos dos olivais, recebendo, em troca, os produtos necessários à confecção de uma ceia melhorada e a que se seguia o baile.
Confesso que era um dos nossos cantares das fainas agrícolas que mais me agradava e ainda hoje me emociona. Muito, muito lindo! Ouvi-o, há dois dias, no Rádio Clube de Monsanto, instituição que muito defende e dá a conhecer a nossa Beira nas suas tradições, na sua riqueza cultural, etnográfica e folclórica. Por todo o Mundo!
Pena que, às quadras, não possa juntar a linda melodia, que fazem parte da minha vida, especialmente da minha meninice e da minha juventude.

No Jardim da República

Já lera e ouvira falar - bem e mal - do arranjo deste Jardim da nossa Vila que, em tempos, conheci quase em pormenor. Por três anos consecutivos, atravessei-o, diariamente, a caminho da velha escola. Bons tempos! Também por ali me sentei, enquanto os meus 2 filhos mais velhos brincavam. Um deles ali deu alguns dos primeiros passos. Faz-me lembrar ainda um quente dia de Julho, na minha pré-juventude, em que lá apanhei uma "grande decepção"... Nada que o tempo não curasse!
Mas vamos a factos. Visitei agora o nosso Jardim, na sua modernizada versão. De maneira geral, posso dizer que gostei do que vi. O piso está muito agradável - será que vai durar? - as árvores foram preservadas e estão cuidadas, os bancos são confortáveis, as vistas belas como dantes. Nestas não tocaram.
O aspecto que pode levantar-me mais reservas refere-se ao uso do "inox" na remodelação do que foi o "lago" central. Penso que pode ter sido equacionada a possibilidade de uso de materiais da nossa região. Sobretudo na cascata central, para mim, de belo efeito. De tal maneira que me sentei, virado para o centro, sem que a água me molhasse os sapatos. Já no que respeita aos bancos circundantes, penso que não seria fácil encontrar outro material em que se pudessem "retalhar" as belas figuras e cenas alusivas às gentes que, há muitos séculos, vêm ocupando e habitando as terras de Penamacor.
Almocei no restaurante que dá para o recinto. Em tão bonito ambiente, merecia melhor serviço. Sem profissionalismo bastante, nos dias que correm, há o risco de ver a cliente a voar. Mais para cima!!!
Voltando ao Jardim. Tendo em conta que eu não seria capaz de fazer melhor... direi que está bastante agradável e que as obras efectuadas melhoraram um equipamento nosso que se estava a degradar. Foi bom!

Em memória dos nossos Mortos

Fez, ontem, 4 anos que iniciei este blog. Com maior ou menor felicidade, tem-me servido nos objectivos para que foi criado: exprimir, por escrito, estados de alma, de forma tão verdadeira e sentida quanto a minha condição humana o permite.
É meu hábito, nesta data, ir de romagem à campa dos meus Pais. Aproveito para recordar tantas e tantas pessoas que, de um modo ou de outro, também me ajudaram a crescer. Embora devesse entrar, no cemitério, de olhos baixos e coração contrito, deparo lá com uma situação que penso "piorar" em cada ano que passa: as pessoas estão a usar as campas dos mortos para as exibirem numa feira de vaidades que me parece desproporcionada e fora do local apropriado. Flores de todas as espécies, cores e feitios - com destaque para as que são fornecidas nas "lojas chinesas" - tornam aquele local que deveria ser discreto, pacífico e silencioso, próprio para a meditação do "Lembra-te, ó homem, que és pó e ao pó hás-de voltar!" numa certa "bagunçada" que muito pode contribuir para divertir os que ali vamos recordar, se lá do Céu estiverem ainda preocupados com as patetices desta vida e, pior, desviar-nos do fim para que a Igreja instituiu a festa da celebração de Todos os Santos e a dos Fiéis Defuntos. Discrição pede-se com urgência. E bom senso!
Aproveito para reler as palavras de Jesus Cristo que, neste dia, poderão dar sentido à nossa vida:
Evangelho segundo S. Mateus 25,31-46.
«Quando o Filho do Homem vier, na Sua glória, acompanhado por todos os Seus anjos, há-de sentar-Se no seu trono de glória. Perante Ele, vão reunir-se todos os povos e Ele separará as pessoas umas das outras, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. À sua direita, porá as ovelhas e, à sua esquerda, os cabritos. O Rei dirá, então, aos da sua direita: 'Vinde, benditos de meu Pai! Recebei em herança o Reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Porque tive fome e destes-Me de comer, tive sede e destes-Me de beber, era peregrino e recolhestes-Me, estava nu e destes-Me que vestir, adoeci e visitastes-Me, estive na prisão e fostes ter Comigo.’ Então, os justos vão responder-lhe: 'Senhor, quando foi que Te vimos com fome e Te demos de comer, ou com sede e Te demos de beber? Quando Te vimos peregrino e Te recolhemos, ou nu e Te vestimos? E quando Te vimos doente ou na prisão, e fomos visitar-Te?’ E o Rei vai dizer-lhes, em resposta: 'Em verdade vos digo: Sempre que fizestes isto a um destes Meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes.’ Em seguida dirá aos da esquerda: 'Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado para o diabo e para os seus anjos! Porque tive fome e não Me destes de comer, tive sede e não Me destes de beber, era peregrino e não Me recolhestes, estava nu e não Me vestistes, doente e na prisão e não fostes visitar-Me.’ Por sua vez, eles perguntarão: 'Quando foi que Te vimos com fome, ou com sede, ou peregrino, ou nu, ou doente, ou na prisão, e não Te socorremos? Ele responderá, então: 'Em verdade vos digo: Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a Mim que o deixastes de fazer.’ Estes irão para o suplício eterno, e os justos, para a vida eterna.»
Da Bíblia Sagrada

No Outono

Nas deslocações para a nossa Beira, sempre que a disponibilidade do tempo o permite, faço uma das viagens, pelo menos, usando a antiga estrada, a passar na Azervadinha e no Couço e daqui, com o "desvio" arranjado, ir logo à barragem de Montargil "fugindo" da antiga "obrigação" de passar por Mora. Aprecio muito este percurso e digo, na brincadeira, que a auto-estrada se compara a "frango de aviário", rápida, mas sem sabor, enquanto que esta viagem me "sabe" a "galinha do campo". Mais "dura", sem dúvida, mas com um "sabor" que me delicia,
Saio de Palmela, em direcção ao cruzamento do Infantado, passo no de Coruche, agora ambos com enormes e seguras rotundas. A seguir vêm a Azervadinha e o Couço. A estrada, ao longo da barragem, até Ponte de Sor, nesta altura do ano torna-se-me fascinante. A água ali tão perto. Bem pouca. O piso está uma "folha de papel" e os plátanos que vão escapando à fúria destruidora do homem estão lindos, com muitas folhas ainda bem verdes, passando pelo amarelo, o encarnado e o castanho de muitas outras. O plátano não é uma árvore bem querida. Emigrante, madeira de pouca utilidade, lenha manhosa, não dá flores nem frutos de que se conheça a utilidade. As suas raízes vão demasiado longe e "desertificam" os terrenos, em volta. No entanto, junto da estrada, a sombra suaviza as viagens durante os calores de Agosto, o verde vivo encanta-nos na Primavera e o multicolorido outonal enche-nos a alma de doces , digo melhor, indescritíveis sensações.
Mas há o reverso da medalha: esta viagem faz-me tomar contacto com uma nefasta realidade: os nossos melhores campos do fértil Ribatejo estão quase ao abandono. Não vi lavras, nem culturas, nem animais, nem pessoas, nem máquinas. Campos daquela natureza rica ... desprezados. A meio do caminho e já no Alentejo, decidi avançar pelas pequenas aldeias, a seguir a Ponte de Sor. Normalmente, faço o desvio pela Bemposta para apanhar a A23, em Abrantes. Pois as muitas hortas que havia no Vale de Arco, no Rosmaninhal. em S. Bartolomeu... estão a desaparecer. Os vendedores que, na beira da estrada, nos "ofereciam" os produtos lá produzidos, já escasseiam.
Depois, na nossa Beira, já todos sabemos o que está a acontecer, a desertificação, com abandono da maioria dos nossos campos. Os olivais apresentam-se carregados, com bom aspecto, mas sem que haja gente que queira recolher a azeitona. Apanhei uns baldes de "vermelhais" para as retalhar e "adoçar", o resto vai ficar ao abandono. Devia ser eu a colhê-las? Talvez, mas já não sinto forças nem motivação para tal. Os velhos não conseguem e os novos não querem.
Para onde caminhas, meu Portugal?

domingo, outubro 25, 2009

Carta à minha Mãe

Aldeia de João Pires, 25 de Outubro de 2009
 
Querida e saudosa Mãe.
Estimo que esta minha carta a encontre na Felicidade eterna, na companhia do meu Pai, dos Avós e tios e restante Família, junto da Santíssima Trindade e de Nossa Senhora.
Querida Mãe, faz hoje 19 anos que nos deixou e, desde essa data, isto nunca mais foi a mesma coisa. Ao princípio, a saudade era tão intensa que quase me endoidecia e apanhei-me muitas vezes a falar consigo. Embora soubesse que me ouvia, nunca consegui receber a sua resposta.
Depois, diziam-me, "o tempo cura tudo". Na verdade cura e não cura. A conformação com a sua ausência foi dando lugar àquilo que eu vivia e era quase um desespero. Além do mais, ficámos com o meu Pai, que já está agora junto de si, sobrou-me trabalho, casaram os meus filhos e nasceram os netos, sim os meus!!! - "filhos criados, trabalhos dobrados" e eu acrescento filhos casados trabalhos quadriplicados - Olhe, Mãe, isto cá na Terra está uma grande complicação, uma "sem-vergonhice" que muito a faria sofrer. Mas voltemos à nossa Família: os seus netos já me fizeram avô. O meu Pai ainda foi bisavô, mas ele já lhe deve ter contado, "O Avô Pim-Pim", como lhe chamava a vossa bisneta mais velha, a Dulce. A mais pequenina, a Leonor, está a chegar, dentro de dias, a que vai ser a primeira filha do seu neto mais novo, pois, o João Pedro. Neto mais novo, claro, não contando com a Cristina, a filha mais nova da minha Irmã, que nasceu três dias antes da sua partida e fez agora também 19 anos. Pois, "Deus tira com uma mão e dá com a outra"... Porque não havíamos de ter as duas ao mesmo tempo? A nós Ele não explicou, mas, com certeza, a Mãe já sabe...
Desde que a Mãe partiu, isto dos seus filhos nunca mais foi a mesma coisa. Como os pintainhos a quem roubassem a galinha, ou ovelhas tresmalhadas, sem pastor, nunca mais fizemos festa lá na Aldeia. E também tivemos outras falhas. Ah! Mãe, quanta falta nos faz cá em baixo. Pensava eu que, quando fosse velho, já sabia de tudo e que não precisaria de si para nada. Pois não é agora que estou a chegar à idade com que se despediu de nós que ando a sentir que ainda necessito mais de si? Pois, só sabemos o bem que temos... quando o perdemos.
Hoje, almocei com a sua Neta mais velha. Tem dois filhos e vive aqui perto de nós. Também vi o falei com o seu neto Fernando, o meu. Vi-o, na Alemanha, e ele viu-nos a nós. O meu neto Tomás está uma gracinha. Vimo-nos e falámos!!! Como? A Mãe nem imagina a volta que isto está dando. Não, já não é preciso esperar semanas pelos aerogramas que eu e o meu Irmão lhe mandávamos de África. "Isto agora é outra loiça". Penso que a Internet não será precisa aí no Céu, mas aqui é um desatino: sabe-se tudo, diz-se tudo, vê-se tudo, uma "fofoquice" pegada. Sim, Mãe, às vezes vê-se mesmo "tudo". Eu sei que a Mãe sempre detestou a "piada grossa", mas esta "escapou-me". Desculpe, sim?!
O JP era uma Criança, quando o viu pela última vez. Depois, cresceu e ficou ansioso de liberdade e de correr o Mundo. Cansou-se e agora, desde há pouco tempo, mora aqui, em frente a nós. Quem diria!!! Os caminhos de Deus são insondáveis. Dele e da Esposa vamos ter a Leonor. Pois, falta o Luís "o Príncipe", como lhe chamava a D. Alexandrina - quando a vir, por aí, dê-lhe um beijo meu. Pois o Luís também anda por aqui. Imagine que tem duas meninas RUIVAS. Um achado, na nossa Família. À Primeira, pensámos que era uma brincadeira dele e da Michelle. Quando veio a Segunda, demo-nos conta que era mesmo a sério. Também ruiva! Pronto, Mãe, eles não brincam em serviço. Saíram duas "coisas" lindas!
E nós, Mãe, eu e a Leo? Olhe, foi uma aposta ganha. Já vão 43 anos que juntámos os trapinhos - "dois gaiatos que não sabem o que fazem" - e que nos temos aguentado. Com solavancos, às vezes, mas agora temos a "certeza" de que um vai fechar os olhos do outro. Para ir ao seu encontro. "É a vida"! - como dizia um nosso 1º, ministro que a Mãe já não conheceu.
Olhe, Mãe, este ano lembrei-me das suas flores e enchi o jardim de sécias. Aí vão, pois sei que lhe vou dar alegria, mesmo que aí nada falte. Mas estas foram criadas por mim... para si. Olhe, vai ficar admirada, mas, em Setembro, não havia sécias na igreja de Aldeia, na festa de Nossa Senhora da Graça. Ou já ninguém as cultiva... ou aquilo "fia fino" - só flores de compra, das cara. Manias. Ou fartura de dinheiro. Tenho uma certeza: não foram cultivadas, colhidas e oferecidas a Nossa Senhora com aquele Amor que nós sabemos.
Ah! A casa!!! O Pai já lhe disse, com certeza, que o vosso grande sonho se realizou - ainda foi DELE! Por pouco tempo. Por isso, quisemos que ficasse para um de nós. É nossa. Está arranjadinha e confortável. É lá que nos abrigamos e pensamos em vós, quando vamos à nossa terra. Há-de ser de um dos vossos netos, se Deus quiser também.
Olhe, Mãe, eu não me cansava de ficar para aqui a escrever, a escrever. Mas Nosso Senhor pode ter-lhe dado alguma tarefa para cumprir e não quero que Se "aborreça" consigo...
Por hoje nada mais: dê saudades nossas a toda a Família aí presente. E às vizinhas. Um dia destes vou escrever sobre alguma delas. À Avó Emília mando um beijo muito especial. Ela sabe que não a esqueço. Já agora à tia Maria Zé também.
Para o Pai e para si eu mando mil beijinhos com saudades sem fim deste seu filho que nunca a esquece,
PS.
1. Não se esqueça de pedir a Nossa Senhora da Graça  e a Nosso Senhor que tenham pena deste pobre estroina, que se esquece, muitas vezes, daquilo que me ensinou com tanto Amor: REZAR E FAZER O BEM!!!
2. A Leonor nasceu, vai fazer 4 aninhos e tem agora um mano lindo, o Pedro. A Cristina casou e é muito feliz, o Francisco, seu neto afim, uma jóia. A maior parte das suas grandes amizades está já consigo.
3. Dos seus irmãos o que restava, o Fernando "Sarra" já o deve ter visto. Foi ter consigo no dia 13 de Junho, quando lembrávamos a morte da vossa mãe Emília, a nossa Avó.
4. Quando há coisas menos boas para dizer, olhe,  Mãe,"bico calado" para não sair asneira nem entrar mosca. Eu queria lá perturbar essa grande Felicidade de estar no Céu! Cá em baixo pensamos que nem era possível!
Beijo saudoso

terça-feira, outubro 13, 2009

Netos!!!

A Madalena é a minha neta mais nova. Só por mais umas semanas, pois a prima a seguir já anda por aí. Está a chegar.
Mas, enquanto o tempo não passa, a pequena "Magaí", como lhe chama a mana, tem destas coisas: estava cheia de saudades do Pai - uma paixão que só uma Crianças pode oferecer. Tendo estado uns dias sem o ver, que melhor maneira de celebrar o seu regresso? Aproveitando as arrumações habituais, nestas situações, "desaparece", por momentos. Há um silêncio pouco habitual, lá em casa. Feita a procura indispensável, aqui a vemos, apanhada em flagrante "de litro" ou de mala. Como queiram. Parece mesmo dizer:
- Papá, à próxima não te esqueças de mim, por favorrrrrr! Leva-me contigo!!! Tu sabes que eu te amo!
E é bem verdade.
E recíproco.
Beijão.
Avô. E Pai!

Poupar energia? Ou esbanjar energia???

Uma das maiores apostas do Governo que agora acaba funções tinha os elevados objectivos de poupar o ambiente e melhorar o enorme deficit na importação da energia que consumimos, sobretudo a de origem fóssil. Assim, aí temos novas regras mais ecológicas na construção, os enormes geradores eólicos, a instalação de novas barragens, o aproveitamento da energia das ondas, as centrais foto-voltaicas, tão oportunas num País com elevados níveis anuais de luz solar, e o também consequente aquecimento da água, em painéis instalados nos telhados ou nos terraços dos edifícios. Eu próprio aderi à campanha e disponho agora de água quente, em abundância, durante as 24 horas do dia, sem gastar um cêntimo em gás ou em electricidade. Uma maravilha que me encanta. Que encanta, de modo especial, a dona desta casa.
No entanto, há sempre o reverso da medalha. Desloquei-me, recentemente, à minha Aldeia, na Beira profunda e, para meu espanto, constatei que foram "plantados" postes de iluminação, de grosso calibre, às centenas, pelos arrabaldes das aldeias por onde passei, com ramais por estradas e caminhos que chegam a atingir quase um quilómetro para além da periferia das povoações. Ora, nas nossas terras do interior, depois do Sol-posto, quase ninguém sai à rua, muito menos pelos arredores e ali ficam aquelas lâmpadas, milhares e milhares, a consumirem milhões de "quilowatts", sem proveito para ninguém. Ou, presumivelmente, com bons proveitos para os accionistas da empresa distribuidora, pois ninguém dá nada "de borla". Mas sempre uma despesa inútil para o nosso País.
E já nem falo do desperdício de energia nas grandes urbes, com destaque para muitos dos edifícios públicos e também privados. E vou referir-me também aos campos, aqui, à volta de Palmela que, apreciados, de noite, lá do altaneiro castelo, mais parecem uma cidade bem iluminada. Mas, realmente, esses campos, vistos à luz do Sol, com povoados aqui e além, são vinhedos onde se produz do melhor vinho do Mundo. E, de certeza, que não será por causa da muita luz importada e mal gasta.
As campanhas têm coisas assim, às vezes boas, outras vezes bem esquisitas. E desta, para poupar energia, que posso pensar? Uma treta portuguesa, com certeza! Desejo-lhes um bom dia, com poupança de ENERGIA!
(Crónica transmitida na "Rádio Sim", no programa "A Telefonia", rúbrica "Faça Você Mesmo!", de 27 de Outubro de 2009.)

Bom tempo, mau tempo!!!

Queridos Amigos e queridas Amigas da Rádio SIM,
Diariamente, quase sempre largas horas, vou ouvindo o muito que de bom têm para nos apresentar. Devo fazer notar que, no "sótão", tem de haver ainda muias mais "novidades" e que, às vezes, a audição se torna monótona, ao longo das 24 horas, pois já se deu o caso de ouvir a mesma música em diferentes programas. O que até pode ser bom, para alguns dos ouvintes, mas eu acho que a "matéria prima" aí nos vossos arquivos pode dar "pano para mangas".
Mas o que verdadeiramente me está a "fazer mossa" é a questão do tempo, do bom tempo. Então a Helena Almeida enche a boca no "bom tempo" que temos. E ela tem menos desculpa - desculpe lá, querida Lena!!! - pois está aqui a viver e a trabalhar numa região com muita agricultura e sabe - devia saber? - que isto que Deus nos manda é tudo menos "bom tempo". Já os povos bíblicos do Antigo Testamento tinham a noção da gravidade das secas causadas pela escassez das chuvas. Ora o que nós temos é um péssimo tempo: os campos estão ressequidos, não se podem fazer as lavouras nem as sementeiras de Outono, os gados não têm pastagens, as árvores estão a morrer de sede, os poços não têm pinga de água, as ribeiras estão à míngua - há regiões onde tiveram de transferir os peixes para os salvar. Por este caminho, Portugal, a Sul do Tejo e até em parte da Beira Interior tornar-se-á, em poucos anos, um prolongamento dos desertos do norte de África. A água que consumimos tem de ser captado em furos cada vez mais fundos e, tudo tem um limite, De onde vai vir a água para beber? Do Supermercado, responderá o miúdo reguila. E para o banho? Vou à piscina, dirá a garota "modernaça". E para lavar a loiça? O cão lambe, exclama o adolescente preguiçoso. E para lavar a roupa? Deito-a fora e vou pedir mais à Cáritas, sugere o "subsídio-dependente"... E assim se vai criando, na sociedade citadina, a ideia de que a chuva não faz falta e de que é mesmo uma chatice!!!Pois!!! Mas faz mesmo falta e, desgraçadamente, vamos senti-lo mais depressa do que seria para desejar. Os camponeses já o sabem. Os bombeiros também. "Os meninos da cidade", os que mais água estragam, vão sabê-lo, em breve.
Queridos Amigos e queridas Amigas,
Por favor, tenham uma atitude pedagógica: em Agosto, calor e céu limpo é bom tempo; em Outubro, Helena Almeida, este tempo ... é uma DESGRAÇA!!!
Abraço todos e vou continuar a ouvir-vos,
O ouvinte chato,
António A. Serrano
Palmela

terça-feira, outubro 06, 2009

Na eira - 3

Ainda o Sol não despontara lá dos lados de Espanha e já o pessoal se apresentara para o "grande " dia. O do tudo ou o do nada. As malhas com a debulhadora - do Luís Ferreira, das Aranhas, que se pagava à "maquia" - davam um enorme desembaraço ao trabalho. Estes pequenos agricultores, na maior parte dos casos, não tinham cereal suficiente para ocupar a máquina nem por um dia. Do nascer ao pôr do sol. Assim, numa só jornada, era possível despachar várias "malhas". Em muitos casos, o trabalho era feito em cooperação, ajudando-se uns aos outros. Um ou dois homens iam para o cimo da meda, meia dúzia deles aparava e arrumava a palha, no campo à volta da eira, uma mulher subia para, com uma foice, "traçar" os "nagalhos" que atavam os molhos - a largada para dentro da máquina era feita por um "profissional", da responsabilidade do dono da malhadeira; na "equipa profissional" vinham também um maquinista, mecânico, diríamos hoje, que também conduzia o tractor e punha tudo em movimento, e um homem para medir o grão que iria cair na arca colocada na "frente" da máquina e cobrar a "maquia" - uma outra mulher tomava conta do "crivo", uma tarefa que ninguém queria pela poeira a que se estava sujeito, dois ou três iam para atar a palha, em molhos. Todo um trabalho ruim, que deixava os corpos cheios de pó e as "praganas" espetadas nas fracas roupas. Que coceira danada!!! Uma mulher ficava encarregada de fornecer água fresca, em cântaro de barro. Havia sempre mais uma ou duas personagens para acudir onde fosse preciso. Também presente o carro com junta de vacas e respectivo ganhão, quase sempre o dono da semente, para que, com ajuda de outro homem, os sacos fossem carregados, quase sempre 15, um "moio", cada saco com uma "fanega", quatro "alqueires", oitenta litros, como se disse antes. Em casa, a dona da "festa", com ajuda familiar, quase sempre a da Mãe, tinha a seu cargo a confecção das refeições e o seu transporte até à eira, podendo isto ser feito quatro vezes por dia, dependendo do tempo que levasse o trabalho a realizar. Como se escreveu para a ceifa.
Para esta malha, calculara-se que um dia seria suficiente. Se o trabalho rendesse, podia-se "meter" ainda o "pão" do J. "Saramago", uma pequena meda, ali mesmo ao lado..
Quando o Sol, cedo, começou a aquecer, já cada um ocupava o seu lugar. O tractor possuía um dispositivo que lhe permitia accionar a malhadeira, sem os inconvenientes do pesado e barulhento motor dos anos passados. Foi, pois, com alívio de todos, que aquela complicada engrenagem se pôs em barulhento labor. O primeiro molho foi atirado para o estrado, a mulher pega-lhe com alguma hesitação, corta o "nagalho" e o cereal foi metido naquele buraco, um sorvedouro, onde desaparece, ouvindo-se um ronco da máquina. Depois, em gestos repetidos, foram aparecendo em cima do estrado e enfiados dentro da malhadeira mais um molho e mais outro, sempre uns a seguir aos outros. A palha saindo pelas "traseiras" e o grão caindo na arca, sendo depois medido "rasa" a "rasa", ensacado, carregado, transportado a casa dos senhores das terras. Sim, as rendas eram as primeiras a entrar neste ajustar de contas. Os sacos ainda haviam de ser despejados, lá junto das "tulhas" dos senhores das terras, onde o grão voltava a ser medido, não fosse faltar algum litro. E, se faltasse - até porque as aferições das medidas nem sempre eram rigorosas, havia que compensar! Sem perdão! Um trabalho injusto e desumano, todo feito só à custa do esforço do rendeiro, já que o beneficiário, ou o seu feitor, apenas tinha de contar e dizer que "está certo". Se as terras arrendadas pertenciam a vários senhores, o que acontecia bastas vezes, havia de se tocar à porta de cada um e "Venho pagar a renda!" Tudo "limpinho", sem se ter uma dor de cabeça nem se derramar uma gota de suor...
À hora do jantar - 12 horas - já a angústia do jovem casal se fazia sentir:
- Então, António, como está isto? Parece-me ver preocupação na tua cara. Que se passa?
- Olha, contava já ter as rendas pagas e ainda só levei duas carradas e está aí outra quase pronta. Isto vai pelo meio. O grão não rende...
- Bem se me apertava o coração, quando vi a seara. Que vai ser de nós?
- Olha, vai para casa. Prepara as merendas. Pode ser que, de tarde, tenhamos mais sorte.
Fingia animá-la - ela, a pessimista (realista?); ele um optimista. Mas, lá no fundo, já adivinhava o desenlance. A coisa estava feia!
Depois do jantar, a palha continuava a sair em quantidade, mas o grão é que não crescia, na arca, com a rapidez tão sonhada. Mais um moio a caminho da renda e a meda a diminuir, a diminuir. Pelo meio da tarde as contas das terras do "Vale do Homem" estavam saldadas. Faltava a da "Tapada da Eira", a da "Tapada do Cabeço" e a da "Tapada da Maria Bernarda". Estas eram bem menores, mas o grão, estava escrito, não daria para muito mais.
A merenda já decorrera num silêncio opressivo. Nada havia a fingir, nada havia para esconder: os molhos eram cada vez menos, a palha mais que muita, como nunca haviam tido, mas o grão, o grão... Uma ilusão.
Amargurada, voltou para casa. Era ainda preciso dar de cear àquela pobre gente que, neste dia, na sua maior parte, havia trabalhado só pela comida. O dia da malha era o dia grande da solidariedade, em que quase todos se ajudavam uns aos outros. Na generalidade, iam-se apercebendo da "tragédia" que entrava na casa daqueles companheiros de desgraça. Afinal, também nisso estavam irmanados. O ano fora mesmo manhoso. Para todos!
O Sol aproximava-se da Serra, lá a Ocidente, quando, cesto à cabeça, ceia para aquele pessoal, Carminda se aproximou da eira, pela última vez, nesse tórrido dia do mês de Julho. Olhar esbraseado, alma em sangue, sabia que nas arcas da sua casa não entrara ainda um grão. A malhadeira não parara, mas o lugar onde estivera a sua meda aparecia agora quase vazio. Donde os molhos haviam pulado para o estrado da máquina eram agora elevados, numa espécie de forquilha, para a plataforma. Em gestos cansados.
- Ó António, então... o pão? - quase grita, ainda com o cesto à cabeça, procurando fazer-se ouvir por cima do barulho das máquinas.
Calmamente, ele dá tempo a que ela se alivie do peso que a oprime menos do que o medo, no peito de ambos, pega-lhe, mansamente, nas mãos e diz-lhe, quase num sussurro, dominando os seus próprios receios:
- Olha, Minda, temos que ter coragem. P´ró ano vai ser melhor. As rendas estão todas pagas e o resto... olha está aí.
Ela olhou, mas não queria ver. Meia dúzia de sacos. Nem dava para acreditar.
Há um cerrar de dentes, lágrimas nos olhos, profunda tristeza no rosto, um esgar de sofrimento, um desanimado curvar de costas. Depois, numa explosão de dor e revolta impotente, braços ao Céu, entrou num choro convulsivo e sentido, com orações e imprecações, onde se intrometiam apenas os ruidosos e últimos estertores da grande máquina:
- Oh! Senhora da Graça, valei-me! Que mal fiz eu? Para que hei-de viver? Triste vida a minha! Que vai ser dos meus filhos?! Ai ! Ai ! Ai! Deus me valha! Santíssimo Sacramento, tende compaixão de mim! Tanto trabalho, tanta despesa! Que mal fiz eu?! Meus queridos filhos!!!