sexta-feira, fevereiro 20, 2009

Era uma vez....


Nasci numa aldeia de pobres entre pobres. No entanto, fui muito rico no Amor dos meus Pais, tudo fazendo para que o essencial não me faltasse. Pão, educação, instrução. Uma infância aos tropeções, ajudando e sendo ajudado a crescer com a realidade dos nossos camponeses. Ao mesmo tempo um menino livre, brincando e correndo descuidadamente pelos campos e ruas, no jogo de "polícias e ladrões" das "escondidas", da "piorreca", do "eixo", do "descanso", da bola de trapos, da "barra", das "nações", do "arrebenta", do "farrapo queimado"... na certeza, quase absoluta, de que ninguém nos fazia mal e, ao mesmo tempo, com a sensação de estar prisioneiro de uma comunidade que assumia a vigilância e a correcção/educação de tudo e de todos, de modo que, se tivesse um "deslize", mesmo antes de chegar a casa já o "telégrafo" se encarregara de accionar o "eu tenho um dedo que adivinha..." da minha Mãe, que nada deixava ocultar. E o respeitinho era muito bonito.
Vem esta introdução a propósito do meu primeiro dia de escola, 7 de Outubro de 1950. O Outono chegara, havia pouco, com o vinho a espumar nas pipas, o odor das nossas maçãs a espalhar-se pelas casas, nos campos as lavras para as sementeiras, as terras a deitar aquele cheiro de encanto provocado pelas primeiras chuvas. As vinhas, já sem uvas, eram então assaltadas pelos rebanhos que, no meio da pobreza quase geral, também para os animais, iam comer as folhas amarelecidas das videiras, enquanto não "rebentavam" da terra as sementes que iriam dar lugar ao verde das novas pastagens.
A manhã daquele dia marcou-me como um ferrete de que não mais conseguiria nem quereria libertar-me. Ainda não eram nove horas e já toda aquela miudagem - os mais novos com as mães - se dirigia para o edifício da escola nova, inaugurado dois anos atrás. Constava-se a presença de um novo professor. O(s) anterior(es) não havia(m) deixado saudades, ouvia dizer. Malhavam mais que ensinavam. Provavelmente avós de futuros ministros... Naquela timidez de garoto de aldeia, ia encolhido e agarrado à saia da minha Mãe. Talvez para impor respeito aquela garotada toda, quase 50 alunos, alguns já com o bigode a despontar, o Professor, ainda jovem, tentava meter alguma ordem com cara de poucos amigos, enquanto fazia as matrículas. Trabalhos simultâneos impossíveis de realizar, hoje! Lá chegou a minha vez de ser arrumado num canto para o fundo daquela enorme sala, onde tudo me era estranho e me senti prisioneiro e infeliz, apesar de ter uma enorme vantagem: a minha Mãe ensinara-me a ler, no Verão anterior. Também fora dela a "pedra" de escrever que ... iria acompanhar-me até sair na 4ª. classe... Estava sentado, apertado contra mais dois companheiros, naquelas "carteiras" ainda novas mas já tão "antigas"... Eu, que correra pelos campos, trepara às árvores, saltara ribeiros, acompanhara as ovelhas e as cabras, cavalgara nos burros e viajara nos carros puxados pelas vacas mansas e pachorrentas, estava agora ali sem saber porquê nem para quê, olhando o tecto daquela sala tão estranha... deitando contas à vida. E que vida! Sete anos e alguns meses!!!
De repente, o assobio subiu, subiu... subiu por aquelas paredes, saiu pelas janelas e fez-me acreditar que já chegara a Primavera e os melros aí estavam para me acordar. No sussurrar daquela sala fez-se um silêncio de "morte" e uma voz que parecia o ribombar de um trovão numa tempestade de Maio ouviu-se como para um despertar de pesadelo:
- Quem foi??? - Quem foi???!!! Quem é que assobiou???
Primeiro, estupefactos, quase a medo, 50 pares de olhos vão-se virando para um garoto perdido e aterrorizado num mundo que lhe estava a desabar em cima. Depois, cheios de coragem, aos olhos esbugalhados juntam-se dezenas de dedos apontando.
- Foi ele!!! Foi ele!!!
- Anda cá, malandro!!!
Levantei-me, a custo. Devagar, muito devagar, apavorado e a tremer, fui percorrendo aquele extenso corredor, interminável, que ia dar à secretária do Professor. Da gaveta saíra, cruel e medonha, uma grande régua de pinho, a estrear...
Quando me aproximei, duas lágrimas rebeldes iam caindo dos meus olhos, em desespero. Não, não a escola não era para mim. "Ó mãe, onde está? Tire-me daqui!!! Ajude-me!!!"
Foi um milagre??? Nossa Senhora da Graça!!! A régua, envergonhada, recolhera à gaveta. O Professor sorriu e disse-me:
- Como te chamas?
- Sou Tó... - balbuciei, soluçando, convulsivamente.
- Pronto, não chores. Mas olha que aqui não se assobia... Vai-te sentar... disse-me, adoçando a voz no que lhe foi possível.
Respirei fundo. Regressei devagar, limpando os cantos dos olhos à manga da blusa.
Assim, o meu primeito professor, "o meu Professor" ganhara um Amigo. E eu também já tinha um novo Amigo. Foi um momento único e estava decidido: havia de ser Professor.
Obrigado, Professor António Antunes Teodósio. Que esteja no Céu. Na Terra, sabe que nunca o esquecerei.

3 comentários:

Américo Valente disse...

Ora aqui está um conto, nada ficcionado, mas sim o relato de um dia na vida do autor. A escola e a vivência campestre dos anos 40-50 estão aqui bem descritos, trazendo-me à memória esses tempos vividos no Vale de Lobo (Vale da Senhora da Póvoa). Muito obrigado AMIGO, por este texto.
Publiquei-o no meu site.
Abraço
Américo Valente

PLANETAZUL disse...

Achei muito interessante esta crónica e qual não foi o meu espanto quando deparo com o nome do meu professor da primária quinze anos depois em Medelim!...
Pertenço ao grupo dos que nunca esquecerão o prof. Teodósio...

António Serrano disse...

Planeta Azul,
Obrigado pela sua visita. 15 anos depois, eu era professor em Proença-a-Velha e namorava, aí por Medelim, a que ainda é hoje minha mulher, Mãe dos meus 4 filhos e Avó dos meus 5 netos. É a vida! -disse alguém.
Passando à porta, visitava, frequentemente, o NOSSO Professor Teodósio.