quarta-feira, junho 24, 2009

Manhã de S. João - única!


O Sol despontava atrás do mar e a impaciência ia tomando conta dos passageiros a bordo do N/M "Império", naquele 24 de Junho de 1968! A terra, a querida "Terra de Santa Maria" não tinha maneira de aparecer a nossos olhos. Fora uma viagem e tantas! 8 dias de mar, sempre mar, com aquela pequena e fugaz saída no Funchal. Bonita esta passagem pela "Pérola do Atlântico", com uma aproximação ao fim da tarde e uma saída para Lisboa, pela meia-noite. Dois aspectos surpreendentes daquela Ilha linda, de uma só penada. Estava nestas doces recordações que me levavam a regressar a Lisboa, depois de uma amarga partida haviam passado quase 25 meses, quando alguém exclama: "Olhem... terra... terra..." Um bruá por todo aquele convés. Poucos teriam ficado no resguardo dos lençóis, pois o momento seria único para a maior parte dos passageiros. Para mim, a aventura começara a 27 de Maio, dois anos antes. Tanta coisa mudara na minha vida. Partira solteiro, regressava casado; partira filho, voltava pai... Mas a mobilização já implicara estes dois pressupostos, aliás todos consequências uns dos outros. Por graça especial de Deus, imerecida de todo, estava-me destinada uma vida militar confortável e sossegada no Q.G. de Tomar, quando tive conhecimento de duas vagas para a minha especialidade, em Nampula e em S. Tomé. O nosso namoro estava já um tanto "velho" - a caminho dos 3 anos e meio - e entendíamos que casar seria um passo a dar. No entanto, a tal independência só nos viria com dinheiro que nos libertasse da tutela paterna. Mas do casamento falarei na data apropriada. "Forcei" a mobilização, opção por S. Tomé com a garantia de Paz e o resto a seu tempo se saberá. Agora vamos chegar a Lisboa. Começaram a dar-se muitos palpites sobre a zona de terra que se avistava. Milhares de pessoas, ao longo de séculos, teriam vivido aquele momento. No meu caso, bem confortavelmente a bordo de um dos nossos navios dos muitos que asseguravam a circulação de pessoas e bens entre a então Metrópole e as então Províncias Ultramarinas. Ninguém arredava pé da amurada, olhos fixos no horizonte, e as opiniões quase não divergiam: tinha de ser o Cabo da Roca e a Serra de Sintra. Um ou outro, com mais conhecimentos a Sul, ainda "apostou" no Cabo Espichel e na Serra da Arrábida. Francamente, hoje não recordo qual a resposta acertada.
A linha de costa foi vindo ao nosso encontro e, pela 8 horas já se destacava a embocadura do nosso mais que saudoso rio Tejo. Feito o alinhamento, com ajuda dos pilotos da barra, aí vamos nós, vendo a bombordo, primeiro, Cascais, Estoril, Carcavelos ... e depois, a estibordo, a Costa da Caparica, a Trafaria... pela proa, a desafiar-nos, a então Ponte Salazar, um espanto para muitos dos espectadores, que a viam pela primeira vez. Ao vivo!
A manhã estava luminosa, as águas do Tejo tranquilas e o calor apertava, suavizado, entretanto, pela brisa que varria o convés, acelerada pela deslocação do navio, em direcção ao cais. A Torre de Belém, que vira tantas vezes de bordo do "cacilheiro" Trafaria-Belém, apresentava-se de outro ângulo e, sobretudo, era vista "com outros olhos". Depois o Monumento aos Descobridores, ao fundo o Mosteiro dos Jerónimos, tantos testemunhos de uma Histórica heróica e trágica de um País que dera "mundos novos ao mundo" e que agora vivia mais um episódio bem doloroso da sua vida pluri-centenária. Lisboa espraiava-se, preguiçosamente, pelas suas colinas e o movimento, nas vias marginais, era acentuado, quando fizemos a tão desejada passagem sub-ponte. A aproximação ao cais de Alcântara deu-se com suavidade e a atracagem ocorreu com segurança. A competência dos nossos Marinheiros sempre a dar boas provas.
A maior parte dos passageiros eram civis e a convivência, a bordo, com os militares não fora famosa. Passado o período das "dores de barriga" e das crueldades de 1961, os "colonos" de Angola, dizia-se, olhavam de esguelha para a presença dos nossos soldados. Dias viriam - e não faltava muito, mas nestas coisas a "bruxaria" nunca funciona - em que voltariam a ser mais que queridos... Já sem remédio!
Dizia eu que as amizades, a bordo, não se chegaram a fazer, pelo que o desembarque se deu rápido e sem cerimónias. Interesses muito mais importantes esperavam-me cá fora. As 10 horas andavam por ali, a minha Mulher e a minha Filha também. Já as avistara, de bordo. Um sonho, uma ilusão , uma doce realidade. Finalmente, o reencontro tão desesperadamente desejado. Uma eternidade esta separação de quase dois meses.
Fora a 30 de Abril anterior que o serviço de transportes do CTI me informara: "O pedido de transporte que fez para a sua esposa e para a sua filha, pela FAP, vai ter lugar, amanhã, 1 de Maio, pelas 7 horas". Que decepção, que mágoa, que angústia. Menos de 24 horas para arrumar uma vida. "Perder" aquilo que de mais caro eu tinha assim... de repente. Nunca tal acontecera! Ter transporte exactamente para o 1º. dia do período que se requerera... Pelo contrário, os aviões vinham já completos de Luanda e só a custo se arranjava maneira dos familiares dos militares de S. Tomé irem conseguindo voltar para Portugal. Mas a vida não é só sorrisos e esta pequena provação - que nos pareceu enorme, na altura! - estava guardada para nós.
Foi, pois, com enorme emoção que desci as escadas por onde abandonei o N/M "Império". Atravessei aquela enorme largura que ia do cais ao lindo edifício da Alfândega e gradeamento envolvente. Atrás estava duas pessoas lindas e queridas, Mãe e Filha, duas das três Mulheres mais importantes da minha vida. O grande abraço caloroso, apertado, doce, muito querido e muito desejado. Depois, o que tantas vezes acontecera, lá em S. Tomé: "Vem, Amor, vem ao colo do pai!" Surpresa!!! Aquilo que sempre foram "favas contadas", o colo do pai, todos os dias, pelas 5 da tarde, com o passeio óbvio, era agora recusado. Como estava "grande" a minha Menina, 8 meses e meio! E "senhora do seu nariz"!!! Os bracinhos que tantas vezes me haviam procurado, apertavam-se agora, com força, ao redor do pescoço da Mãe. Devagarinho, de mansinho, palavras doces e ternas e o milagre vai dar-se. Espreita com um olhito, mais conversa doce, vira, suavemente, a cabecita - a Mãe a ajudar "Olha, Filha, é o papá... é o papá!" - olha de frente e... o amor vence sempre, dois bracitos que se estendem, mil beijos que lhe cobrem a cara e uma tão grande saudade ali começa a diluir-se, na esperança de outros amanhãs tão iguais a esta manhã de S. João.
Ah! Da Mãe? Do Marido e da Mulher? Ali estavam, frente a frente, juntinhos de almas e corpos, cheiinhos de saudade e de Amor e com milhões de coisas para contar. E na certeza de uma vida que ia recomeçar. Para sempre! Lado a lado! Com Deus. Graças a Deus!

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