quinta-feira, julho 23, 2009

A meu Pai


Era já noite cerrada, quando aquele jovem camponês entrava na casa iluminada pela luz da lareira e a de um candeeiro de petróleo. Lavava a cara bonita e viril, as mãos fortes e calosas, os braços robustos e sentava-se no "seu" canto, à lareira. Trabalhara o dia inteiro, desde antes de o sol nascer até depois de se ter escondido, atrás da serra. As vacas, suas amigas e companheiras, haviam sido tratadas e recolhidas, porque o dia seguinte voltaria a ser como o de hoje, o de ontem, sempre a trabalhar aquela terra dura e falsa, que nunca seria a sua. A sua jovem esposa adormecera já o bebé e ia entretendo aquele menino, a caminho dos 4 anos, para que a ceia fosse saboreada pelos três, para que o contacto do Pai com o filho fosse o momento forte de um dia que acabava. O Homem sentava-se no seu banco (tripeça) de cortiça, estendia as mãos para o lume que crepitava no lar, contavam-se as "novidades" de um dia sempre igual a tantos outros, os sorrisos e as palavras tão ansiadas surgiam, invariavelmente:
- Venha cá o meu "Troquenitas!" - era a frase chave de um envolvimento breve mas profundo entre duas pessoas que se amavam, verdadeiramente.
A Criança, como que impelida por mola invisível, saltava do seu assento e ia colocar-se entre os joelhos, já prontos para esta missão, daquele que todo o dia se afadigara para que o essencial não faltasse naquela casa. Num esforço hercúleo, de mãos dadas com aquela jovem Mulher, que fora preparando a refeição que partilhariam, dentro de instantes.
O Garoto apoiava os seus cotovelos nas pernas musculadas do Pai e por ali se ficava, ora sentando-se na esquerda, ora na direita, depois balançando-se, acariciando aquela barba dura e negra, beijando aquele rosto rude e queimado pelo frio, pelo calor, pelo vento de muitos jornadas, ao ar livre, naquela Aldeia da Beira Interior. Piruetas com piruetas, beijos com beijos, voltas e mais voltas tudo aquele jovem Pai suportava, deliciado e compensado de um dia que, desta maneira, assim, deixaria de "ser para esquecer".
- Então, "Troquenitas", portaste-te bem? Brincaste com o mano?
Não havia rádio nem TV. Em Família, conversava-se. Mesmo com as crianças. Era um despejar de perguntas, com respostas espontâneas ou sugeridas, um mostrar de habilidades, um partilhar de carinhos que a Mãe, interrompia:
- Bom, são horas de cear. Deixa o Pai em paz... Já é noite e depois temos de ir para a cama. O Pai tem de se levantar cedo para deitar de comer às vacas. E amanhã é para trabalhar.
Nunca naquela casa se comia sem agradecer a Deus e pedir a Sua Bênção. Ao comer. Ao deitar. Ao levantar. Às Avé-Marias... Pelos que estava, pelos que faltavam, pelos que precisassem...
Feita a sentida oração, era pois tempo de dar forças ao corpo. Ela lavava a loiça, abrindo um espaço pequeno para mais umas mais umas brincadeira . "Vamos deitar que já é tarde, o relógio já bateu as 9" - decidia a Mãe
O Homem acendia então a lanterna de azeite "para ir ao palheiro ver se as vacas estavam bem deitadas"... "não fosse acontecer algum azar com aquelas cordas"...
Quando regressava já a Criança dormia. As Crianças. Duas. Até mais de dez anos depois.
No dia seguinte, as cenas repetir-se-iam. Por poucos anos. O outro, o Amigo e o Rival, preparava-se já, a gatinhar, para ocupar o lugar. Para deleite do Pai. A meninice é sempre fugitiva.
Se o Pai fosse vivo, faria anos HOJE. Muitos. Muitas mais são as saudades de uma infância feliz. Até nas dificuldades. Ali tinha a certeza de que "o dinheiro não dá a Felicidade"... Muito pelo querer deste Homem. O meu único herói.
Obrigado, Pai.

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