segunda-feira, outubro 05, 2009

José Maria Fernandes Monteiro, um Amigo!

"O Verão quente de 1975 passara, deixando, em muitos, sequelas e frustrações. Para outros fora tempo de oportunidades e de oportunismos, que perduram até aos dias de hoje, frutos de uma revolução que não o chegou a ser. Na justa partilha dos bens e no aparecimento de novas mentalidades… muito continua por fazer. Começo por estas considerações, porque as ouvi repetidas vezes, da boca de um homem sábio e bom, com um conhecimento da natureza humana fora do vulgar, próprio das pessoas que muito caminharam, observaram e leram sinais nos sinais dos tempos. “O saber de experiência feito”, como nos fala Camões. Afinal, o homem, desprezados os Valores éticos e morais que o distinguem dos outros bichos, não deixa de ser um macaco. E que macaco! O Sr. Fernandes tinha razão. Infelizmente!!! A democracia que nos prometiam era boa para … os “chicos-espertos”…
Estávamos em Setembro de 1977, quando me apresentei na Escola da Azeda
, que escolhera porque se encontrava perto da casa onde eu morava, no bairro de S. Gabriel, em Setúbal. Naquele tempo, ficava fora da cidade e era constituída por dois pavilhões pré-fabricados, dentro de uma vedação, e uma sala bem desconfortável, no exterior da rede, que fora ocupada pela Comissão de Moradores, com apoio da Município, uma vez que o proprietário a abandonara, quando se ausentara para parte incerta, por força dos “ventos de Abril”. Fora destinada a ser escritório de uma firma que se propunha urbanizar os terrenos até ao farol, lá bem no alto. Os prédios haviam de chegar muito mais tarde. Não teriam nada que ver com o projecto de então passado ao esquecimento…
Éramos seis professores – a Odete Varela, a Odete Tavares, a Rita, a Margarida, a Maria Helena e eu próprio – com turmas enormes, mais de 30 alunos. Dado o abandono do meio rural e a “fuga” dos camponeses para as grandes cidades, com a consequente “explosão escolar”, ao lado ia-se erguendo um enorme e moderno edifício escolar, dos famosos "tipo P3", já em adiantado estado de construção. Era uma novidade, com salas abertas, refeitório, gabinetes, ginásio, campo de jogos. O modelo fora importado dos países nórdicos – soubemos depois que já estava por lá "fora de moda" quando, em Portugal, era o “ai Jesus” das construções escolares. Sempre "a reboque", como de costume… – e nós criávamos enormes expectativas para o ocupar, logo que possível. Aquele ano lectivo de 1977-78 decorreu num instante, mas a “certeza” de que, em Setembro próximo estaríamos "lá em cima" começou a deixar-nos enormes dúvidas. Havia sempre uma desculpa: a falta de mobiliário, a demora na entrega pelo construtor,
que impedia a ligação da água e da luz, a falta de estores, o enorme pátio cheio de entulho e ervas… uma série de contratempos. O bairro crescera, as crianças eram mais que muitas, uma escola novinha ali mesmo à mão, era um desafio. E, em Outubro seguinte, estávamos lá em cima, com a ajuda dos pais – os pais mais formidáveis que encontrei em toda a minha vida docente! – que participaram na limpeza do pátio e na do interior do edifício – já que, para todo aquele espaço, tínhamos apenas uma “contínua”, a querida D. Piedade! – que nunca poderia dar a resposta de que uma escola daquela envergadura precisava. E sabemos como os serviços oficiais são lentos para as decisões que servem, realmente, as populações. Enfim! Fechámos os antigos pavilhões e aí fomos, todos contentes, para a "casa nova", ainda longe de estar completa. Começámos sem luz eléctrica, sem estores, sem equipamento de ginásio nem de cozinha, o campo de jogos por asfaltar, bom… só com cadeiras, armários e mesas. Nada mau!
Pode dizer-se que, nessa altura, a escola ficava fora da Cidade. Assim, dada a abundância de espaço, cá fora, deram-nos aquele enorme pátio, quase um hectare, com 3 ou 4 oliveiras, 2 choupos, recém plantados, à entrada, e areia, muita areia. Um terreno assim, à volta de uma escola primária, era novidade. Nem na nossa Cidade nem nos arredores havia algo que se lhe parecesse. Não se podia chamar “terra” àquilo que ficou depois de todo aquele campo haver sido revolteado com as pesadas máquina, antes da implantação do belo edifício. Mais belo do que funcional, como rapidamente nos demos conta, com 3 turmas a funcionar em espaço aberto, cada uma delas a fazer trabalho diferente e em diferentes níveis de escolaridade. Uma confusão!!! Que saudades dos desconfortáveis pavilhões “lá em baixo”…
Bom, a partir de agora vamos deixar os problemas do edifício, que foram muitos, e cingirmo-nos, o mais possível, à “quinta”… Logo nas reuniões de pais, que foram muitas, se começou a pensar no que fazer daquele “enorme deserto”. A minha veia de camponês, “dizia-me” que aquilo ainda havia de ser um jardim. E uma quinta. E um pomar. Um sítio onde valesse a pena viver. E aprender. Afinal, o espaço “dava para tudo”.
Em 1978, eu tinha 35 anos e as forças que só são nossas naquela idade. O senhor Fernandes poderia ser meu pai, nos seus 74 anos. Mas ninguém o diria. A sua casa era a que mais perto ficava da escola. A D. Piedade trabalhava já lá como funcionária. “Uma trabalheira dos diabos”, primeiro, sozinha, com aquele enorme espaço interior e exterior para tratar. Sozinha, não, pois a presença e ajuda do marido, senhor Fernandes, era constante, sempre que as folgas e os intervalos do seu trabalho diário, lá numa das Empresas da zona industrial, o permitiam. Com 74 anos ainda trabalhava, por conta de outrem, todos os dias??? Ora, outros tempos, outras atitudes, outras maneiras de ser… Este é o Homem de quem vou passar a falar. Ambos Beirões. Ele “alto” e eu “baixo”. Naturais de concelhos limítrofes. Ele do Sabugal e eu de Penamacor. Rapidamente se estabeleceu, entre nós, uma corrente de simpatia que iria crescer, crescer até se transformar numa enorme e inapagável Amizade.
Eu tinha uma grande apetência pelas coisas da terra. Nascera nela e nela crescera. A directora, naquele ano lectivo, Prof. Odete Varela, era da Cidade e não tinha grande “queda” para estas coisas do campo. No entanto, “deu-me” “carta branca” para realizar o sonho que começara a crescer na minha cabeça. O Senhor Fernandes despertara-me a ideia, ao pedir licença para ali, naquele vasto espaço, lhe ser ”dado” um canto para fazer um pedaço de horta. Licença que lhe foi concedida e mais que merecida, pelo empenho no trabalho, pela ajuda que dava nas limpezas e arrumações e por ser um guarda dedicado e fiel de tudo aquilo que, de outro modo, ficaria ao abandono. E as Crianças poderiam assistir e participar do saber que o amanho da terra proporciona. O Sr. Fernandes, mesmo que o cansaço fosse muito, mal o seu cão ladrava, ali perto da escola, dando sinal de que algo poderia estar errado “lá em cima”, saltava da cama e “dava a volta”, apenas sossegando quando tinha a certeza de que tudo estaria bem.
Mas retomemos o fio à meada. Nas reuniões de pais e professores assentara-se que aquele espaço teria de mudar de aspecto. Feitos contactos com Alcácer do Sal, foi-nos oferecida “planta” que deu para colocar uma sebe, ao longo da vedação de rede, em toda a volta. Também com ajuda da Câmara Municipal de Setúbal. Estávamos em Janeiro de 1979. Logo a seguir, pedindo aqui e ali, foi a vez do enorme laranjal, com as Crianças a plantarem a sua própria laranjeira, que acompanhariam no seu crescimento e desenvolvimento. Depois, o espalhar árvores de sombra, por todo aquele espaço, foi obra de semanas. O aspecto daquele terreno modificara-se, Logo para a entrada do enorme pátio, ladeando a rampa de acesso, foi desenhado um jardim, com canteiros e um “lago” para serem construídos pelos pais, nos sábados, domingos de manhã e feriados. Outros aproveitavam mesmo as folgas para darem a sua parte. Que pais!!! - repito… Trabalhavam e arranjavam os materiais. Foi um desatino e, nesse memorável ano lectivo, a escola da Azeda ficou diferente, muito diferente, para melhor. Centenas de plantas, todas pequeninas…
Pois é … aqui é que a “porca torce o rabo”. O entusiasmo inicial esfriava, na medida em que as coisas funcionavam, de molde a tranquilizar os pais; aos sábados éramos cada vez menos e o último canteiro foi acabado já só por dois: eu e o José Godinho, um querido e também grande Amigo meu e da Escola, que a morte tão tragicamente nos roubou.
As plantas estavam lá. Pela experiência vivida noutras escolas, sabia que o Verão, com as férias, era fatal para elas. E o deserto aí estaria, de novo, em Setembro seguinte. Apesar da colocação de mais uma contínua, mesmo com a ajuda das Crianças, sabia-se que manobrar aquela enorme mangueira, 50 metros de plástico de uma polegada de diâmetro, tinha de ser obra de “gigantes”. Já se experimentara isso, quando a Primavera chegara, sobretudo nos meses de Maio e Junho… Sem rega, tudo morreria e nunca se passaria da “cepa torta”…
O nosso Amigo já dera mostras de ser a pessoa de quem a Escola precisava. Sempre que podia, aparecia e colaborava, desinteressadamente. Foi o senhor Fernandes que nos valeu, que me valeu. Eu decidira que aquelas plantas não morreriam. E ele “chegou-se à frente”. Com a esposa, a D. Piedade, sempre a não contar os minutos, as horas, os dias, as semanas que deram à Escola. No ano lectivo seguinte, fui eleito director, cargo que desempenhei até ser destacado no ME. O senhor Fernandes teve um papel fundamental no crescimento e embelezamento daquela Escola. Os canteiros encheram-se de roseiras, malmequeres e flores diversas, que estavam por todo o lado. As laranjeiras cresceram e deram frutos. Frutos abundantes e deliciosos. Ali se “fez” uma bela figueira que dava figos como nunca comi antes. Nêsperas bem doces. Até lá provei uma banana “maçã” que já não via, desde África. Bananeira que a “esperteza saloia” de quem queria fazer uma horta, sem nunca ter mexido na terra, arrancara. A ignorância, a presunção e a inveja juntas dão resultados desastrosos. Foi difícil perdoar esta barbaridade de uma colega…
Por todo o lado as árvores de sombra foram dando o que tinham para dar. Mimosas, pinheiros, plátanos, choupos, palmeiras. Já nem me lembro de todos os nomes… E o senhor Fernandes, sempre presente. As minhas poucas e breves ausência não eram notadas, pois nada ali falhava. Os cuidados eram sempre os mesmos, como se a Escola fosse a sua própria casa: regar, mondar, cavar, adubar, podar, estrumar… proteger, defender. Ele era o grande amigo de toda aquela vida vegetal. Hastear e retirar a Bandeira Nacional, nos domingos e feriados. Acender e apagar as luzes, ao anoitecer e de manhã, como se a conta da luz fosse paga do seu próprio bolso. Manter aquele espaço com aspecto agradável. A celebração da Missa, na Escola, um serviço à Comunidade Católica, uma ideia sua, que acolhi com agrado. Sempre o salão polivalente, à 2ª. feira, estava como se nada lá tivesse acontecido, no dia anterior. Uma Comunidade bem responsável, a da Azeda. A vigilância e defesa da Escola sempre activa. Quantos desacatos e prejuízos o senhor Fernandes lá evitou. Um homem decidido. Um cidadão respeitado.
Então os anos passavam e ele não envelhecia? Não, homens como ele são "eternos".
Já falei do amigo da Escola… E do meu Amigo?
Costuma-se dizer que, depois de mortos, todos são bons… Não gostaria que se pensasse isso daquilo que vão ler…
Conhecer este Homem grande foi para mim uma sorte e uma dádiva de Deus. A obra que realizei naquela Escola, a certa altura “ex-libris” da Cidade, visitada por professores e educadores de várias nacionalidade, mesmo do Japão, sem o Senhor Fernandes seria impossível. Foi meu braço direito, meu braço esquerdo. Substituiu-me, quase sempre com vantagens, nos trabalhos exteriores, como homem do campo que se orgulhava de ser, para que aquele belo jardim fosse realidade. Com a mangueira, com a enxada, com o sacho, com o ancinho, aquelas belas plantas foram suas filhas. Sempre que nos encontrávamos, o trato era sereno e afável. Dava gosto conversar com ele. Tinha sempre uma história para contar, uma frase para incentivar, um bom conselho para dar. Fui seu confidente. Foi meu confidente, quase um pai. Às seis e meia, fosse qual fosse o trabalho a fazer, aí ele largava tudo, “A minha Maria está à espera para rezarmos o terço”. Homem de Fé, Pai amoroso, Marido extremoso. Amigo insubstituível.
Perguntar-se-á, com razão: “Então a vossa relação era tão perfeita que estavam sempre de acordo?” No que respeita aos interesses da Escola, posso dizer que sim. Como seriam melhor realizados ou conseguidos, nem sempre. Uma pequena história, para ilustrar. No espaço que existe ao fundo dos canteiros, que tantas vezes nos deliciarem com a beleza e cheiro das suas rosas, pensei, um dia, fazer um pequeno recanto de pinheiros mansos. Mesmo atrás do actual gabinete de recepção. Comprei os pinhões, falei com o senhor Fernandes e a sementeira lá se fez. As leis da natureza cumpriram-se, os pinheiros nasceram, lindos, lindos. Confesso que é uma árvore que me encanta. Cerca de duas dezenas, na altura de verem a luz do sol. O tempo foi passando, um ano … dois anos, eles cada vez maiores. Um dia, reparei que teria desaparecido uma meia dúzia deles. Chamei o Senhor Fernandes e perguntei-lhe o que tinha acontecido. “Estavam muito bastos e é preciso desmatá-los”. “Senhor Fernandes, vemo-nos todos os dias, sou o director da escola e devia ter falado comigo”. “Pensei que não fosse preciso…” “Mas é…” No entanto, para arrelia minha, de vez em quando mais um, dois ou três pinheiros “perdiam-se em combate”. Eu quase desesperava, com este desafio. “Ainda há-de ter pinheiros de sobra” – garantia-me quando já eram menos de uma dezena. Em 1990, cessou a minha relação institucional com a Escola, por destacamento pedagógico na DREL. O meu espanto, um dia, foi grande que dei conta que já só havia dois pinheiros. Hoje só lá está um. Enorme, lindo, com uma larga copa, ocupando todo o espaço onde os irmãos nasceram. Realmente, hoje é o pinheiro justo para o tal espaço. Um dia será “pinheiro de sobra”…
José Maria Fernandes Monteiro, sem si, sem a sua ajuda, sem o seu estímulo jamais me teria sido atribuída a “Medalha de Oiro da cidade de Setúbal" pelo Bem que foi esta Escola para a nossa popuplação. Partilho-a, pois, consigo, numa homenagem mais que merecida, que a Escola da Azeda lhe ficou a dever. Muito injusta foi tal falha.
Obrigado, meu Amigo. Acompanhá-lo, à sua última morada, foi um sofrimento. Ficar sem a sua Amizade, uma perda irreparável. Tenho muitas saudades suas. Sabe que nunca o esquecerei. Felizes os filhos que tal Pai tiveram.
À D. Piedade, muito querida Amiga, já tão velhinha e tão doce, aos filhos e netos que permitiram que participasse, nesta obra, reveladora de um grande Pai que tais filhos teve, aqui fica o meu abraço, com enorme gratidão.
António Serrano, no primeiro dia da Quaresma, Quarta-feira de Cinzas de 2009."

Do livro "Um Justo Pater Familias", de Ezequiel Alves Fernandes, ontem vindo a público.

1 comentário:

Américo Valente disse...

Olá Amigo
Tenho seguido os seus contos, cheios de sentimento e emoção. Desta vez resolvi escrever algo a fim de demonstrar a minha admiração por eles, que no fundo representam vivências suas e que de algum modo marcaram a sua vida. Ao lê-los, muitas memórias adormecidas vêm à tona, por haver algumas semelhanças.
Quis publicar no meu site o conto "Na Eira 1" e só não o fiz ainda porque esperava o "Na Eira 2", mas parece que não vai haver.
Um abraço para si e família deste seu amigo
Américo Valente