terça-feira, outubro 06, 2009

Na eira - 3

Ainda o Sol não despontara lá dos lados de Espanha e já o pessoal se apresentara para o "grande " dia. O do tudo ou o do nada. As malhas com a debulhadora - do Luís Ferreira, das Aranhas, que se pagava à "maquia" - davam um enorme desembaraço ao trabalho. Estes pequenos agricultores, na maior parte dos casos, não tinham cereal suficiente para ocupar a máquina nem por um dia. Do nascer ao pôr do sol. Assim, numa só jornada, era possível despachar várias "malhas". Em muitos casos, o trabalho era feito em cooperação, ajudando-se uns aos outros. Um ou dois homens iam para o cimo da meda, meia dúzia deles aparava e arrumava a palha, no campo à volta da eira, uma mulher subia para, com uma foice, "traçar" os "nagalhos" que atavam os molhos - a largada para dentro da máquina era feita por um "profissional", da responsabilidade do dono da malhadeira; na "equipa profissional" vinham também um maquinista, mecânico, diríamos hoje, que também conduzia o tractor e punha tudo em movimento, e um homem para medir o grão que iria cair na arca colocada na "frente" da máquina e cobrar a "maquia" - uma outra mulher tomava conta do "crivo", uma tarefa que ninguém queria pela poeira a que se estava sujeito, dois ou três iam para atar a palha, em molhos. Todo um trabalho ruim, que deixava os corpos cheios de pó e as "praganas" espetadas nas fracas roupas. Que coceira danada!!! Uma mulher ficava encarregada de fornecer água fresca, em cântaro de barro. Havia sempre mais uma ou duas personagens para acudir onde fosse preciso. Também presente o carro com junta de vacas e respectivo ganhão, quase sempre o dono da semente, para que, com ajuda de outro homem, os sacos fossem carregados, quase sempre 15, um "moio", cada saco com uma "fanega", quatro "alqueires", oitenta litros, como se disse antes. Em casa, a dona da "festa", com ajuda familiar, quase sempre a da Mãe, tinha a seu cargo a confecção das refeições e o seu transporte até à eira, podendo isto ser feito quatro vezes por dia, dependendo do tempo que levasse o trabalho a realizar. Como se escreveu para a ceifa.
Para esta malha, calculara-se que um dia seria suficiente. Se o trabalho rendesse, podia-se "meter" ainda o "pão" do J. "Saramago", uma pequena meda, ali mesmo ao lado..
Quando o Sol, cedo, começou a aquecer, já cada um ocupava o seu lugar. O tractor possuía um dispositivo que lhe permitia accionar a malhadeira, sem os inconvenientes do pesado e barulhento motor dos anos passados. Foi, pois, com alívio de todos, que aquela complicada engrenagem se pôs em barulhento labor. O primeiro molho foi atirado para o estrado, a mulher pega-lhe com alguma hesitação, corta o "nagalho" e o cereal foi metido naquele buraco, um sorvedouro, onde desaparece, ouvindo-se um ronco da máquina. Depois, em gestos repetidos, foram aparecendo em cima do estrado e enfiados dentro da malhadeira mais um molho e mais outro, sempre uns a seguir aos outros. A palha saindo pelas "traseiras" e o grão caindo na arca, sendo depois medido "rasa" a "rasa", ensacado, carregado, transportado a casa dos senhores das terras. Sim, as rendas eram as primeiras a entrar neste ajustar de contas. Os sacos ainda haviam de ser despejados, lá junto das "tulhas" dos senhores das terras, onde o grão voltava a ser medido, não fosse faltar algum litro. E, se faltasse - até porque as aferições das medidas nem sempre eram rigorosas, havia que compensar! Sem perdão! Um trabalho injusto e desumano, todo feito só à custa do esforço do rendeiro, já que o beneficiário, ou o seu feitor, apenas tinha de contar e dizer que "está certo". Se as terras arrendadas pertenciam a vários senhores, o que acontecia bastas vezes, havia de se tocar à porta de cada um e "Venho pagar a renda!" Tudo "limpinho", sem se ter uma dor de cabeça nem se derramar uma gota de suor...
À hora do jantar - 12 horas - já a angústia do jovem casal se fazia sentir:
- Então, António, como está isto? Parece-me ver preocupação na tua cara. Que se passa?
- Olha, contava já ter as rendas pagas e ainda só levei duas carradas e está aí outra quase pronta. Isto vai pelo meio. O grão não rende...
- Bem se me apertava o coração, quando vi a seara. Que vai ser de nós?
- Olha, vai para casa. Prepara as merendas. Pode ser que, de tarde, tenhamos mais sorte.
Fingia animá-la - ela, a pessimista (realista?); ele um optimista. Mas, lá no fundo, já adivinhava o desenlance. A coisa estava feia!
Depois do jantar, a palha continuava a sair em quantidade, mas o grão é que não crescia, na arca, com a rapidez tão sonhada. Mais um moio a caminho da renda e a meda a diminuir, a diminuir. Pelo meio da tarde as contas das terras do "Vale do Homem" estavam saldadas. Faltava a da "Tapada da Eira", a da "Tapada do Cabeço" e a da "Tapada da Maria Bernarda". Estas eram bem menores, mas o grão, estava escrito, não daria para muito mais.
A merenda já decorrera num silêncio opressivo. Nada havia a fingir, nada havia para esconder: os molhos eram cada vez menos, a palha mais que muita, como nunca haviam tido, mas o grão, o grão... Uma ilusão.
Amargurada, voltou para casa. Era ainda preciso dar de cear àquela pobre gente que, neste dia, na sua maior parte, havia trabalhado só pela comida. O dia da malha era o dia grande da solidariedade, em que quase todos se ajudavam uns aos outros. Na generalidade, iam-se apercebendo da "tragédia" que entrava na casa daqueles companheiros de desgraça. Afinal, também nisso estavam irmanados. O ano fora mesmo manhoso. Para todos!
O Sol aproximava-se da Serra, lá a Ocidente, quando, cesto à cabeça, ceia para aquele pessoal, Carminda se aproximou da eira, pela última vez, nesse tórrido dia do mês de Julho. Olhar esbraseado, alma em sangue, sabia que nas arcas da sua casa não entrara ainda um grão. A malhadeira não parara, mas o lugar onde estivera a sua meda aparecia agora quase vazio. Donde os molhos haviam pulado para o estrado da máquina eram agora elevados, numa espécie de forquilha, para a plataforma. Em gestos cansados.
- Ó António, então... o pão? - quase grita, ainda com o cesto à cabeça, procurando fazer-se ouvir por cima do barulho das máquinas.
Calmamente, ele dá tempo a que ela se alivie do peso que a oprime menos do que o medo, no peito de ambos, pega-lhe, mansamente, nas mãos e diz-lhe, quase num sussurro, dominando os seus próprios receios:
- Olha, Minda, temos que ter coragem. P´ró ano vai ser melhor. As rendas estão todas pagas e o resto... olha está aí.
Ela olhou, mas não queria ver. Meia dúzia de sacos. Nem dava para acreditar.
Há um cerrar de dentes, lágrimas nos olhos, profunda tristeza no rosto, um esgar de sofrimento, um desanimado curvar de costas. Depois, numa explosão de dor e revolta impotente, braços ao Céu, entrou num choro convulsivo e sentido, com orações e imprecações, onde se intrometiam apenas os ruidosos e últimos estertores da grande máquina:
- Oh! Senhora da Graça, valei-me! Que mal fiz eu? Para que hei-de viver? Triste vida a minha! Que vai ser dos meus filhos?! Ai ! Ai ! Ai! Deus me valha! Santíssimo Sacramento, tende compaixão de mim! Tanto trabalho, tanta despesa! Que mal fiz eu?! Meus queridos filhos!!!

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