terça-feira, novembro 10, 2009

A boleia

Penamacor. Final dos anos 60. As aulas terminavam pelas 16 horas e as tardes eram mais que longas. Estava decidido. A seguir à "escola" iria a Aldeia visitar os meus Pais. No Fiat 850. Um "luxo". O caminho era curto e até dava para me alegrar o resto do dia. Assim, fui nas calmas. A Primavera, já bastante adiantada, em pleno mês de Maio. Naquele tempo, todo o bocadinho de terra arável havia sido cultivado ou servia para que pudessem crescer as pastagens de que os muitos rebanhos então existentes se alimentavam. E viam-se ovelhas e cabras por aquelas quebradas, com o dlão-dlão, dlim-dlim dos seus chocalhos e campainhas, pastor atento, encostado ao cajado, o cão fiel a seu lado. Era ainda tempo de muito trabalho e pouco proveito. Aqui e além, as mondadeiras labutavam em volta dos milhos e os centeios preparavam-se para mudar do verde deslumbrante, que "fugira" a bom "fugir" por encostas e vales, no mês de Abril que se fora, para o tom "cor de palha" que os havia de levar às ceifas. As hortas precisavam de ser regadas, umas com água puxada dos poços, a pulso, no caldeiro pendurado no varal da velha "burra", outras com a água tirada nos alcatruzes, fazendo-se ouvir o "tlem-tlem" com que o bater do "travão" da nora embalava a mansa burra que, de olhos tapados, ia percorrendo o seu caminho tão curto, mas sem fim. Parei, por instantes, na ponte da ribeira das Taliscas. Um local bem aprazível, com o verde dos salgueiros, das faias, dos plátanos, dos freixos e dos choupos. Ouvia-se, a pouca distância, o "barulho" de um motor que de lá puxava ainda a água para matar a sede do batatal que, ali mesmo, na fértil margem, tanto prometia.
Embalado nestas vistas tão nostálgicas de um tempo em que eu era homem, depressa cheguei a Aldeia do Bispo, com a "Farmácia Milongo", do simpático e saudoso Dr. Ildefonso, ali mesmo, na Lameira, à beira da estrada.

Por um destes acasos que só acontecem uma vez na vida, vejo de lá sair o Ti António "Baratinho", um dos meus conterrâneos mais castiços e divertidos, a morar mesmo lá pertinho dos meus Pais. Era um tempo em que não se tinha medo de dar boleia nem de a apanhar. Em "a talhe de foice" devo dizer que fiz uns milhares de kms nos carros de outros e, ainda hoje, se for sozinho, não sou capaz de deixar alguém a pé, na berma da estrada. Tendo a consciência do que tal atitude representa...

Mas voltemos ao fio da história. Mal o avistei, parei e perguntei-lhe:

- Ó Ti António, então o que faz por aqui? Vou à nossa Aldeia... Quer boleia?

- Ó Professor, nem sabe quanto lhe agradeço. A minha Lurdes está doente e vim aqui buscar uns comprimidos...

- Vá, entre, que chegamos num instante!

Retomada a marcha, aí vamos nós, numa de boa disposição. Sendo uma pessoa de pouca instrução, sem saber ler nem escrever, era de uma educação e simpatia a toda a prova. Usava a L.P. com muita graça e devo confessar que ainda dei umas boas gargalhadas, pois ele sabia histórias de conterrâneos nossos, verdadeiras ou inventadas e lidava com as palavras como poucos, para as recontar as vezes que fossem precisas. Com habilidade. Talvez só igualada pela de um seu irmão, o José que, tempos depois, me fez rir um dia inteiro, quando fomos companheiros de vindima... Cá estou eu "a variar"...

Ficando na mesma rua para onde eu me dirigia, apeou-se junto da sua casa e os remédios devem ter dado o efeito para que foram comprados.

O tempo passa num instante e, dias depois, voltando a visitar os meus Pais, quem é que encontro, ali, "à mão de semear", no Largo do Rato? O Ti António "Baratinho"...

Simpatia com simpatia se paga. Parei.

- Olá, Ti António, boa tarde! Então a sua Lurdes já está boa?

Uma gargalhada, como só ele era capaz de dar, ecoou, naquele Largo. Depois, quase sem se poder conter, exclamou:
- Ó Professor.... a minha Lurdes .... já está boa. Mas a sua boleia ... é que me vontade de rir!!!
Francamente, eu não percebia onde ele queria chegar. E ria, ria... Depois, com alguma dificuldade, consegui entender o que ele ia dizendo:

- Então... não quer saber??? Com a vontade de andar de carrinho.... esqueci-me que tinha levado a burra e deixei-a lá ficar???!!!

Tive de sair. O insólito da situação obrigava a tal. E rimos os dois... até nos cansarmos. Para espanto de alguns "Cucos" que iam passando, sem perceberem o porquê daquele "desaforo"...

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