quarta-feira, fevereiro 17, 2010

Reflexão em 4ª. Feira de Cinzas

"Lembra-te, ó homem, que és pó e ao pó hás-de tornar!"
"Arrependei-vos e acreditai no Evangelho!"
Isaías 58, 1-10:
Grita, em voz alta, sem te cansares. Levanta a tua voz como uma trombeta. Denuncia ao meu povo as suas faltas, aos descendentes de Jacob os seus pecados.
Consultam-me, dia após dia, mostram desejos de conhecer o meu caminho, como se fosse um povo que praticasse a justiça e não abandonasse a Lei de Deus. Pedem-me sentenças justas, querem aproximar-se de Deus. Dizem-me "Para quê jejuar, se Vós não fazeis caso? Para quê humilhar-nos, se não prestais atenção?"
É porque no dia vosso jejum só cuidais dos vossos negócios e maltratais os vossos trabalhadores. Jejuais entre rixas e disputas, dando bofetadas sem dó nem piedade. Não jejueis como tendes feito até hoje, se quereis que a vossa voz seja ouvida no alto. Acaso é esse o jejum que me agrada, no dia em que o homem se mortifica? Curvar a cabeça como um junco, deitar-se sobre sacos de cinza? Podeis chamar a isto jejum e dia agradável ao Senhor? O jejum que me agrada é este: libertar os que foram presos injustamente, livrá-los do jugo que levam às costas, pôr em liberdade os oprimidos, quebrar toda a espécie de opressão, repartir o teu pão com os esfomeados, dar abrigo aos infelizes sem casa, atender e vestir os nus e não desprezar o teu irmão. Então, a tua luz surgirá como a aurora, e as tuas feridas não tardarão a cicatrizar-se. A tua justiça irá à tua frente e a glória do Senhor atrás de ti. Então invocarás o Senhor e ele te atenderá, pedirás auxílio e te dirá "Aqui estou!"
Se retirares da tua vida toda a opressão, o gesto ameaçador e o falar ofensivo, se repartires o teu pão com o faminto e matares a fome ao pobre, a tua luz brilhará na tua escuridão e as tuas trevas tornar-se-ão como o meio-dia.

terça-feira, fevereiro 16, 2010

Vamos "deitar uma `cacada`"???

Pronto, eu confesso! Não gosto, nunca gostei do Carnaval. Por "simpatia" fica-se logo a perceber que não gosto, nunca gostei de "brincadeiras de Carnaval". Pregar uma "boa" "partida de Carnaval" dá trabalho, é preciso pensar muito e a maior parte dos foliões não está p'raí virada. Isto de envolver a "vítima" de tal modo que ela própria ria - e se a vítima não achar graça também, o efeito perdeu-se, porque só os alarves riram do seu sofrimento - tem que revelar muita imaginação e, sobretudo, muita inteligência. Então rir dos pobres, dos humilhados, dos ofendidos, dos desprezados da vida... é, em meu modesto entender, desumanidade, bestialidade. Muita gente se divertiu no Carnaval. Um número incontável de pessoas sofreu... no Carnaval. Vou esquecer-me desta palavra.
Em Aldeia, o Entrudo era mais dado a festas do que a partidas. As 5ªs feiras de comadres e de compadres, as imediatamente anteriores a Terça Feira Gorda, davam motivos a confecção de doces - o inigualável arroz-doce nunca falhava - ao assar de umas peças de enchido do fumeiro ainda fresco e, não raro, a um ou outro bailarico. Lá pelo meio da festa sorteavam-se os "compadres" e as "comadres", ficando cada um a saber a quem teria de comprar as amêndoas no Dia de Páscoa, o mais tardar na 2ª. feira da Senhora do Incenso. Escusado será dizer que nem sempre as "sortes" eram "legítimas" e "justas" - como as eleições em certas partes do Mundo, dava-se o jeito para se "albardar o burro (ou a burra) à vontade do dono (ou da dona)". Salvo seja! Mais havia sorrisos cúmplices que valiam aquela batota. E quem é que nunca teve 20 anos? A minha neta, aqui ao lado, diz que ela nunca teve. Lá chegará, se Deus quiser, mais depressa do que pensa!
Mesmo no dia de Entrudo, como já acontecera nos domingos anteriores, as raparigas vestiam os seus saiotes plissados, de cores garridas, as blusas bordadas, punham os lenços bem lindos ao pescoço ou atados na cabeça e passeavam-se pelas ruas da Aldeia, estrada abaixo, estrada acima, de braço dado, ou entravam em modas de roda, cantando e dançando. Iam-se juntando os rapazes mais "corajosos", a ponto de quase só haver "pares perfeitos". Alegria a rodos. Os tocadores de concertina, por estes dias, eram sempre difíceis de contratar. Maior a procura do que a oferta. Se havia um "habilidoso" que se dispusesse a tocar num realejo, era mais que certo que o baile estava armado. Muitas vezes, ali no alcatrão da estrada. Outras no salão de "A União". Mas o baile na Aldeia há-de merecer uma página especial. Hoje é de Entrudo que se trata. E era tanta a gente nova, nos dias de descanso, também nessa Terça-Feira, que cheguei a ver três rodas a dançar, num espaço de 200 metros, a extensão do alcatrão, nos anos 50. Bailava-se até que a claridade do dia o permitisse. Se a diversão fosse na estrada. Onde só muito raramente passava um automóvel. Os dançarinos nem precisavam de parar. Um pequeno desvio para a beira, com grande admiração dos "passantes". Ah! Quanto a alcatrão ... hei-de contar a aquela do dia em que me tornei "preto"...
Toda esta conversa para chegar... às "partidas" de Entrudo.
Ficou dito que não eram muitas. Nem variadas, portanto. Escrever cartas anónimas, dizer "mentiras" para enganar quem caísse nelas, carregar "a pedra de afiar as agulhas", mandar encomendas com qualquer "porcaria" lá dentro, fazer umas quadras de "escárnio e maldizer", as "proclamas de casamento" feitas pelo Ti "Bila" - "Estão aqui p´ra se casar/ Estes dois grandes animais/A uma falta a albarda/E a outro... os atafais" e outras brincadeiras com que ele, no seu andar desengonçado, meio coxo, alto e magro ia fazendo rir o pessoal... pouco ou nada que magoasse, seriamente, "os destinatários"... No entanto, a mais temida e, às vezes, a desejada das "partidas" era a "cacada". De CACOS!!!
Naquela escuridão, era difícil distinguir, fora de portas, a quem se abria a porta. Mas todos se conheciam "pela voz". As pessoas desconfiavam que a muita ou a pouca "sorte" lhe podia bater à porta, por uma daquelas frias noites de Fevereiro. À cautela, nunca se expunham, sem saber a quem. E mesmo assim... a "cacada" podia entrar. O Entrudo já andaria lá pela "Terra Fria"...
Podia-se receber uma "cacada" de rebuçados. De castanhas. De bolotas. De bugalhos. Ou mesmo de cacos... Quase sempre!
A rapaziada "autorizada" a vaguear pelas ruas, entre a ceia e o deitar, questionava-se:
- Vamos deitar uma "cacada" a X?
Estudava-se a maneira de "atacar". Havia lá rapariga jeitosa? Estava por ali algum a "piscar-lhe o olho"? Um saco de rebuçados - 3 por um tostão, de fruta apenas 2 - ou daqueles chocolates pequeninos e deliciosos como nunca mais me soube nenhum assim tão bem. E lá se dirigia o grupo para o "alvo" escolhido. Batia-se à porta, conversa e mais conversa, "abra", "não abro", "o que é que queres?"... Com alguma insegurança a porta entreabria-se e, num gesto mais ou menos desajeitado, lá entrava o "petisco" pelo corredor fora, onde seria apanhado unidade por unidade. Que sorte! Até podiam ser castanhas. Ou amêndoas.
Mas o destino podia ser diferente para outros "alvos". Se fossem bugalhos... não seria mau de todo. Nem sempre a porta se franqueava. Se se convencesse o dono a casa a abri-la, podia entrar por ela dentro várias mancheias de areia, pedras, cacos. "Rais t'a partira!" era o praguejar mais suave que a malta, em fuga desordenada, tinha, então, ocasião de ouvir.
Por vezes, a porta não era mesmo aberta. Escolhia-se, então, uma que tivesse aquele buraco por onde passavam os gatos. Às vezes, as galinhas. Havia também, naquele tempo, outras portas que ficavam "no trinco" ou mesmo só encostadas ao batente. Vítimas fáceis, não de assaltantes violentos e malfeitores, mas daquele mocidade "louca, ingénua, generosa"... E lá se fazia passar aquele "entulho" com que os habitantes da casa eram presenteados. Nada que não se pudesse "pagar". Na mesma moeda. Era só esperar a ocasião. Embora as "escutas" e a espionagem fossem mais difíceis que nos dias que correm. Não havia telemóveis. Nem sequer telefone. Nem telefonia. Nem TV. Nem luz eléctrica.
"Ó Avô, mas isso passava-se Antes de Cristo? "Não filha, já o teu avô era grandote..."
Notas:
1. Por tradição, na casa de meus Pais, comia-se a "bexiga" do porco, que fora cheia com partes especiais do corpo deste "bendito" animal, primeiro bem curtidas e depois secas nas varas do fumeiro: o rabo bem "migado", um pouquinho de orelha, "ossos tenrinhos" e outras gostosuras que a minha Mãe sabia. A sua "morte" era certa; ou no Domingo Gordo ou na terça-feira de Entrudo. Arroz com aquele acompanhamento... nunca mais! E se se houvessem salvado algumas pequenas alfaces dos gelos do Inverno que já dava sinais de partir... seria primeira e a melhor salada do ano.
2. Tornava-se difícil conseguir podadores, pois a época era propícia a ganhar-se "algum" dos que podiam pagar. Então, os mais pobres organizavam-se em regime de cooperação: trabalho retribuía-se com trabalho. Lá se arranjavam um ou dois Amigos para que a pequena vinha fosse "atesourada" em... Terça-Feira Gorda.
- Ó Carminda, parece que a vinha está fraca... - diria o meu Pai lá para Julho.
- Que é que querias? Podada em dia de Entrudo!!! - respondia a minha Mãe, com um riso bem travesso.

sábado, fevereiro 13, 2010

A Bíblia que Saramago não leu ou "Ensaio sobre a cegueira"...

Gálatas 5
Estai, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a colocar-vos debaixo do jugo da servidão. Eis que eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos aproveitará. E de novo protesto a todo o homem, que se deixa circuncidar, que está obrigado a guardar toda a lei. Separados estais de Cristo, vós os que vos justificais pela lei; da graça tendes caído. Porque nós pelo Espírito da fé aguardamos a esperança da justiça. Porque em Jesus Cristo nem a circuncisão nem a incircuncisão tem valor algum; mas sim a fé que opera pelo amor. Corríeis bem; quem vos impediu, para que não obedeçais à verdade? Esta persuasão não vem daquele que vos chamou. Um pouco de fermento leveda toda a massa. Confio de vós, no Senhor, que nenhuma outra coisa sentireis; mas aquele que vos inquieta, seja ele quem for, sofrerá a condenação. Eu, porém, irmãos, se prego ainda a circuncisão, por que sou, pois, perseguido? Logo o escândalo da cruz está aniquilado. Eu quereria que fossem cortados aqueles que vos andam inquietando. Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não useis então da liberdade para dar ocasião à carne, mas servi-vos uns aos outros pelo amor. Porque toda a lei se cumpre numa só palavra, nesta: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. Se vós, porém, vos mordeis e devorais uns aos outros, vede não vos consumais também uns aos outros. Digo, porém: Andai em Espírito, e não cumprireis a concupiscência da carne. Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro, para que não façais o que quereis. Mas, se sois guiados pelo Espírito, não estais debaixo da lei. Porque as obras da carne são manifestas, as quais são: adultério, prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçaria, inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias, Invejas, homicídios, bebedices, glutonarias, e coisas semelhantes a estas, acerca das quais vos declaro, como já antes vos disse, que os que cometem tais coisas não herdarão o reino de Deus. Mas o fruto do Espírito é: amor, gozo, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fé, mansidão, temperança. Contra estas coisas não há lei. E os que são de Cristo crucificaram a carne com as suas paixões e concupiscências. Se vivemos em Espírito, andemos também em Espírito. Não sejamos cobiçosos de vanglórias, irritando-nos uns aos outros, invejando-nos uns aos outros.

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Avô, vai falar de Aldeia...

As aulas haviam terminado pelas quatro e meia, brincadeira até depois das cinco. O Sol, pusera-se, portanto, lá para trás da Arrábida, e saímos de Setúbal para Palmela, ouvindo a Rádio Sim, a minha preferida. Que não a do Filipe. Como é costume, às quintas feiras, o meu neto aconchega-se no banco de trás e prepara-se para uma pequena soneca. Que a irmã aproveita, de forma marota, depois de "apanhada" noutra escola, para o despertar de maneira nem sempre ortodoxa.
A locutora Teresa Silva entra no ar e o meu neto salta do seu sossego:
- Avô, avô, está a falar de Aldeia!
Sorri-lhe. Alinhara num desafio daquela excelente profissional, com quem já gravara, um ano atrás, o primeiro "A minha música" que todos os domingos anima as emissões desta "Rádio do nosso tempo com músicas do seu tempo", pelas 15 horas. Desta vez o desafio era "A minha terra é a mais bonita..." Em vez de um bilhete postal, enviara-lhe, pela internet, 4 fotos da minha Aldeia, pois decidira que, mesmo gostando muito de Palmela, a nossa TERRA é só uma, aquela em que nascemos.
Estava na biblioteca de Setúbal, quando o "telelé" causou algum "frisson" naquele silêncio que deve ser próprio de todas as bibliotecas. Sabia do que se tratava, pois já houvera outras comunicações. Com pedido de desculpas, saio pela escada abaixo, alertando a Teresa de que a nossa entrevista iria ter por cenário a linda avenida Luísa Todi. E foi assim que, no meio de uma brincadeira, o Filipe ouviu o avô dizer coisas lindas da mais linda Aldeia do Mundo. Ali tudo bem justificadinho!!! "Está fora de causa discutir esta certeza, Teresa. Aqui tem de prevalecer a ditadura!!!"
Uma bem sonora gargalhada da Teresa Silva fez sair o Filipe do seu espanto e sorrir também. O caminho até Palmela foi, desta vez, mais curto. Com as explicações necessárias para o meu neto entender aquele "milagre".

terça-feira, fevereiro 02, 2010

Tarde, na Aldeia...

As tardes eram curtas e frias, naquele fim de Outono, já Novembro bem adiantado. Muitas vezes chuvosas, com vento à mistura. Pelas quinze horas, a "escola" acabava e vinha então o melhor momento do dia para aquela garotada numerosa que enchia de vida e alegria as ruas, largos e becos da Aldeia. Excepto para alguns mais "infelizes” que tinham por dever ajudar os Pais na guarda dos animais, enquanto os progenitores apanhavam a "erva" para os bichos comerem durante a noite para estarem prontos a trabalhar, logo de manhã, no dia seguinte, quando o "tempo" o permitia. Outras Crianças viviam mesmo no campo e lá ... tinham de regressar. Para trabalhar, mesmo no escuro.
Deixemos, por hoje, a história destes menos afortunados e fiquemo-nos pela garotada do "Povo". Só a frequentarem a Escola eram perto de cem alunos, na maior parte rapazes. Depois do bater das três horas, no relógio da torre da igreja, pela estrada acima, dada por finda a “prisão”, chilreavam como pardais. Ia-se a casa, num instante, para largar a “bolsa” dos livros, poucos, e em busca de um pedaço de pão e mais "qualquer coisa" que podia ser só pão. Com sorte, uma talhada de queijo. Umas azeitonas. Um naco de toucinho. Julgo que nenhum de nós sabia o que era manteiga. Mas, verdadeiramente, o que interessava era a brincadeira, pois não tardaria que ficasse escuro. Não havia frio que vencesse aquela enorme vontade de brincar. Os professores haviam abandonado o edifício da escola e, apesar das recomendações de não se voltar para lá a brincar no pátio de recreio, este e
ra o nosso lugar preferido. Fazia-se um silêncio cúmplice e nenhum daqueles miúdos seria capaz de denunciar os prevaricadores. A autoridade "policial" na Aldeia era o regedor. O nosso regedor, o Ti Machado, “obrigava” que um de nós ficasse à espreita, pois ele tinha de passar ali, sem falha, de regresso do seu campo para casa. À aproximação do regedor, um magote de garotos agachava-se atrás do muro do pátio, em completo silêncio, e só se ouvia o bater dos juvenis corações acelerados pela brincadeira e pelas correrias. E ele, mansamente, no seu passo calmo de reformado da Guarda-Fiscal, ia avançando, para o centro da Aldeia. Nunca cheguei a saber se ele não nos via ou se não nos queria ver. Certo, certo é que se contentava com esta atitude de respeito daquela miudagem e também nunca nos pôs fora da brincadeira. A escola tinha o melhor espaço da povoação onde se podia jogar à bola. Se a bola assim se podia chamar. De trapo, de cortiça, de uma meia. Mas o futebol não tinha ainda lugar cativo no coração da garotada de então. Éramos muitos e o pátio da escola nunca daria espaço suficiente para tantas e tão variadas diversões. Naquele tempo, com alimentação pouco calórica e com o movimento constante, não havia crianças gordas. Então cada rua, largo ou beco tinha, pelo menos, meia dúzia de miúdos. Os outros lugares preferidos para as nossas brincadeiras, para além do já referido terreiro da escola, um pouco no limite do povoado, eram o largo do Pereiro, no coração da Aldeia, o adro da igreja, o largo do Rato, com aqueles 200 metros de estrada alcatroada, uma novidade e um "luxo" nos anos 50. Eram pontos de confluência de várias ruas e uma atracção irresistível. Naqueles locais inesquecíveis se jogava às escondidas, o pião, versões "à nica" ou ao "botafora", o descanso, o eixo corrido ou o “um por um, dois bois, três ingleses…”, o jogo do lenço, o dos polícias e ladrões, o da palmada, o do burro, simples ou corrido, o do marra, o da piorreca (com as rodas dos carrinhos de linhas), o dos botões (muitos tinham as mães que comprar e pregar), as escondidas ( 1...2...3... 20 "arredonda, arredonda,,, quem não está que se esconda... precedido do ita, ita, ita ááá!!! quem s'tá livre, livre s'táá" ou "entra o avião na escola militar, onde é que vai poisar? Lis-boa- a" "Tu vai esconder..."). Às vezes, o que ficava "a tapar" inventava e começava logo pelo "dezaum, dezadois, dezatrês, dezaquatro, dezacinco, dezasseis.... dezavinte! arredonda, arredonda..."), o "jogo da China” ou das 5 pedrinhas, o farrapo queimado, a mamã dá licença, a bilharda, o jogo das nações. O do descanso era jogado com variantes, assim como os da barra e a barra do lenço. E o do mata com aquele seu grito de “faz jogo!!!” Uma boa parte deles tinha época própria. Aqui ficam apenas alguns dos jogos participados pelos rapazes, com duas ou três excepções, pois das meninas eram mesmo "tabu" para a malta que havia de “ir às sortes”, um dia… Precisarei de ajuda amiga para entrar nas brincadeiras das nossas colegas e conterrâneas.
Faziam-se ainda corridas de arcos - de arame, destramente conduzidos com o "guiador" ou de aros de bicicletas, um luxo. As crianças faziam os seus próprios brinquedos: carros de cortiça, de madeira, de cana e até de latas de conservas... As primeiras trotinetas com rolamentos de esferas, duas tábuas de madeira articuladas por "dobradiça" metálica arrancada "a ferros" - com toda a propriedade da expressão - numa das forjas da Povoação, foram um verdadeiro achado... As tardes eram um corropio que enchia o povoado de vida e som.
Só havia ordem de estar fora de casa, na rua, até ao toque das "Ave-Marias", quase sempre ponto final para as brincadeiras de cada dia. Depois da ceia, “andar na rua” era uma regalia a que só se podia aspirar com os 18 anos feitos. Até porque ficava escuro como breu e o convite à vadiagem não era atractivo. Nem os maiores nos davam a mínima chance.
À hora daquele toque, boa parte dos adultos havia já regressado das tarefas do campo, se permitidas pelo tempo, especialmente a apanha da azeitona, o cuidar dos animais, as hortas. As mulheres acendiam os lumes, quase sempre com lenha fraca e os fumos iam saindo pelos telhados de telha vã, subindo no lusco-fusco do anoitecer, para o céu ainda azul, iluminado com os últimos raios do sol poente, adivinhado-se noite bem fria e manhã de geada. As chaminés eram uma raridade a que só os de mais posses tinham acesso. Os homens arrecadavam e acomodavam os animais nos palheiros e outros passavam pelas tabernas para mais um copo com os “amigos do copo”.
Depois do toque sagrado só se brincava à porta de casa, excepcionalmente. Ali, " à mão de semear" dos pais, era fácil juntar um grupinho de crianças vizinhas para ainda se divertir, até no escuro - e que escuro! - da noite, que caíra. Para se brincar até no frio e na noite era precisa "organização". Assim, antes, ainda com luz solar, os garotos haviam ido pelos campos limítrofes da Aldeia à procura de gravatos ou gravetos, às vezes surripiando um pouco da fraca lenha lá de casa, e faziam a sua própria fogueira ali mesmo, na rua, ao ar livre, sob o estrelado do céu, enquanto as mães, regressadas dos trabalhos do campo, acendidas as lareiras, tendo ido buscar cântaros de água à fonte e comprado qualquer coisa numa das lojas da terra, se entregavam à tarefa de cozinhar a fraca ceia, quase sempre, nesta época, "couves traçadas" com batatas e um fio de azeite. Havia, às vezes, um bocado de chicharro, 3 ou 4 por vinte e cinco tostões. Se houvera a sorte de cozer o pão, metido o peixe numa "caçola" de barro, um dente de alho, azeite e cebola e o forno da Aldeia faria o milagre de uma ceia "de reis".
Os garotos, à volta da fogueira, conversavam - Paulo de Carvalho não teria ainda nascido? Havendo alguma sorte, com o "borralho" enchiamos a braseira de uma vizinha, a troco de uma moeda de 5 tostões ou de duas laranjas... A hora da ceia chegava, num instante, e a brincadeira acabava mesmo. Depois, um ansiar pelo dia seguinte. Sem novidades. Desejado, apesar de tudo. Para ser vivido, de novo, intensamente.