segunda-feira, março 29, 2010

Ladainhas

2. Das Mulheres
A Semana Santa entrara com a celebração de domingo de Ramos. O luto era p’ra valer. Só se podia cantar a Paixão do Senhor Jesus. Rir era quase proibido.
Na igreja, o sino deixara de tocar, as imagens estavam cobertas com panos roxos e negros e não havia flores nos altares. O toque das Ave-marias era dado pela matraca – 4 argolas de ferro (duas em cada face) fixas numa base de madeira - dando volta à Aldeia, agitada pelas mãos da garotada, a que um ou outro já mais crescido ia pegando, mais para se divertir que por devoção.
Quinta-feira não deixara de ser um dia bem duro de trabalho, lá pelos campos fora, canalha em férias, a dar uma ajuda na guarda dos rebanhos ou no amanho das terras. “O trabalho do menino é pouco, quem o perde é louco” ou “de pequenino se torce o pepino” eram adágios a que qualquer daqueles garotos se habituara, desde que o seu entendimento lhe dera para os compreender.
Pelo cair da tarde tinha lugar o regresso ao povoado, pessoas e animais haviam de procurar abrigo, enquanto a matraca ia alertando com “primeira para a Ladainha”.
Dentro das modestas casas, acendiam-se os lumes e preparavam-se as ceias. Aquele primeira semana de Abril, com as tardes a ficarem cada vez maiores, garantira que a Primavera viera para ficar, noites frias, manhãs agradáveis, o calor do sol a fazer a vida renascer nos campos. Bem suados.
Este dia tinha um especial significado na vida das gentes desta Aldeia. Por uma só vez, por uma só noite, em todo o ano, as suas gentes haviam de juntar-se, em sentido acto penitencial, a implorar de Deus perdão e misericórdia.
Já a refeições fumegavam e de novo a matraca ia passando com o seu trac-trac-trac-trac, de rua em rua, e o alarido da miudagem clamando “segunda para a Ladainha “, “segunda para a Ladainha”… A camioneta da carreira chegara ainda com sol. Desta vez os “mirones” viram compensada a sua curiosidade, pois a malta de Lisboa aí estava; gente que não perderia esta noite por nada antecipara a vinda para as festas da Páscoa. Lá de cima do tejadilho o Sr. Martinho bem clamava “De quem é esta mala?” “De quem é este cabaz?” “ De quem é esta cesta?” …. “Ninguém dá uma ajuda?” “Com este atraso nem vou dormir a Penamacor…” Cá em baixo eram risos e cumprimentos e um ou outro braço lá se foi estendendo para que o transporte usado naquele tempo pudesse seguir. Com grande atraso. Mas quem se importava com as horas?
As badaladas das 9 horas da noite foram caindo lentas, compassadas. A matraca regressava da terceira volta, agora agitada com mais entusiasmo por rapazotes mais velhos e treinados, dando àquele som cavo e triste mais ritmo e força.
De todas as casas da Aldeia começavam a sair as famílias, com o agasalho possível, xailes pelos ombros, lenços na cabeça, casacos e camisolas, que o ventinho espanhol prometia…
As mesmas crianças que, no primeiro dia dessa semana, haviam empunhado os ramos tão bem compostos, transportavam agora artísticas lanternas arranjadas lá em casa, uma roda de cortiça, com o perímetro de uma folha de papel branco “almaço”, onde tinham sido colados os símbolos dos martírios do Senhor: pregos, martelo, cruz, coroa de espinhos, chicote… Nesse tempo ainda ninguém ouvira falar de papel de lustro, nem de papel celofane, nem de papel crepe ou de seda. Mas a imaginação e a habilidade não tinham limites e era dos forros dos envelopes das cartas de então que, guardados para esta ocasião, iriam sair autênticas obras de arte.
Feita a parte mais difícil - enrolar, fixar e decorar o papel branco - no furo central da roda de cortiça era enfiada uma cana, que havia de servir de pega para a lanterna a empunhar e para encaixar, na ponta que ficasse abrigada pelo papel, a vela com que havia de alumiar em todo o cortejo religioso. Era essa, pelo menos, a expectativa, gorada, por vezes.
A Lua Cheia brilhava em todo o seu esplendor e enchia as ruas do povoado, quase se alcançando, com a vista, os campos e montes em redor. Mesmo assim , candeias e candeeiros não foram esquecidos e também na mão ou no bolso a velas com que se alumiaria ao Senhor. Todos em direcção à igreja paroquial, só os impossibilitados ficariam em casa.
O adro registava a afluência dos grandes dias de festa. O templo estava a abarrotar. As nove e meia tinham soado e era tempo de começar.
As invocações seriam as mesmas das últimas seis sextas-feiras. Desta vez, rezadas por toda a população , a que se juntariam os migrantes já chegados durante a semana. Sobretudo nesse dia.
Em Quinta-feira Santa, a Cruz, a transportar por um homem descalço, seria a maior da igreja, em madeira, com uma notável e dolorida imagem de Cristo moribundo, e havia sido “despida” do pano negro que a ocultava do olhar dos Fiéis. Também o percurso seria a dobrar. Pelo menos. Durante mais de uma hora, noite dentro, com fé e emoção, aquelas vozes, homens, mulheres e crianças haviam de cantar, sem desfalecimento:
- Senhor, tende piedade de nós!
- Cristo tende piedade de nós!
- Santa Maria, rogais por nós!
- S. José, rogai por nós!
- Santa Maria Madalena, rogai por nós!
- Virgem Mãe de Deus e Mãe nossa, alcançai-nos do vosso amado Filho, misericórdia!
Eram dezenas e dezenas de luzes: as lanternas das crianças, habilidosamente confeccionadas, em casa, também pinhas em archote, velas que se mantinham acesas, a custo, contrariando a vontade da fina aragem que soprava, candeias de azeite, candeeiros de petróleo. De vez em quando, algum alarido: uma lanterna, ou por má confecção, ou porque a vela, lá dentro, não se adaptara, convenientemente, ou ainda por força de um “encosto” de outra lanterna mais forte, lá ardia, sem ter cumprido a sua missão, com sorrisos “cruéis” de uns e algum choro das “vítimas”. Havia janelas iluminadas, de uma ou outra aparecia um rosto, quase sempre sofredor, às voltas com a idade ou com a doença. Uma lágrima furtiva, lábios que rezavam. Os, simplesmente, silenciavam…
Na capela do Espírito Santo, na capela do Largo do Pereiro, na Igreja Matriz, respondia-se, em coro, ao convite “… pelo Divino Amor de Deus Padre-Nosso!” Um deles mesmo “Pelo primeiro dos presentes que faltar, pelo Divino amor de Deus, Padre-Nosso!
A noite ia adiantada e o final aproximava-se. A igreja estava “à cunha”. Mesmo “à cunha”, pois ainda não tinha os bancos que hoje existem. Todos de pé!
Após as súplicas e orações finais, era chegado o momento de a Cruz regressar ao seu lugar. E, enquanto voltava a ser tapada com o negro pano, todo o Povo a cantar
“Estava a Mãe Dolorosa,
Junto aos pés da Cruz, chorosa,
Enquanto o Filho pendia!
Enquanto o Filho pendia!.
Ó Mãe de Jesus trespassada
De dores, ao pé da Cruz,
Rogai por nós, rogai por nós,
Rogai por nós a Jesus!”
De regresso a casa, sentia-se ter passado por um momento único na vida de cada um, que só a demência poderia fazer esquecer.
Oxalá eu o tenha presente, na hora da minha morte.
Fotos de João Paulo Fidalgo e Carla Geraldes, in pág. de Facebook de Aldeia de João Pires, com vénia.

sábado, março 27, 2010

Domingo de Ramos

Os ramos mais lindos das oliveiras foram guardados para este dia.
Enfeitados com as poucas flores disponíveis, na época - glicínias, lírios, perpétuas, malmequeres – que, atadas no ramo, com fios de lã, algodão ou até com as linhas de costurar, podiam acabar num encanto, uma pequena obra de arte, ou nem por isso, dependendo do bom gosto da mãe, da avó, da irmã ou até da vizinha, a acudir à confusão provocada por vários ramos a terem de sair da mesma casa. O que muitas vezes acontecia, pois as Crianças não faltavam, como hoje.
Domingo de Ramos! Era uma festividade bem desejada, como se toda a comunidade quisesse celebrar as alegrias da entrada triunfal de Jesus, em Jerusalém, e libertar-se da opressão de uma Quaresma que obrigava à meditação, ao silêncio, à penitência, à conversão.
Os sinos haviam tocado "a última" para a Missa e, a caminho da Capela do Pereiro, por todas as ruas da Aldeia, dezenas de Crianças empunhavam os ramos de oliveira, quase sempre bem alto, lá na ponta de uma cana também ela escolhida e aparada com todo o cuidado. Era quase um concurso saber quem levava o ramo o mais jeitoso e o mais bem composto. Vaidades de mães e pais, que também os gaiatos apreciavam.
Os ramos eram quase só transportados pelos Crianças, sobretudo pelos rapazes. Um ou outro adulto carregava já o seu também, se se quisesse distinguir da generalidade, com o rosmaninho ou o alecrim, pois a todos os devotos seria entregue um raminho de oliveira que o sacristão se encarregara de arranjar.
As Crianças  ajeitavam-se para junto do celebrante e os adultos enchiam o largo contíguo à capela, o coração do povoado.
No início da celebração os ramos iam passando de mão em mão até que cada um tivesse a sua parte, seguindo-se a sua bênção. Os que sobrassem seriam queimados e a cinza usar-se-ia na celebração do início da Quaresma do ano seguinte, em Quarta Feira de Cinzas.
Organizava-se a procissão em direcção à igreja paroquial. Com as leituras e orações em Latim, também os cânticos seguiam no mesmo tom:
- Lauda, Jerusalem, Dominum! Lauda Deum tuum, Sion! Hossana! Hossana! Hossana, Filio David!
- Benedictus qui venit in nomine Domini! Benedictus qui venit in nomine Domini! Hossana! Hossana! Hossana in excelsis!!! Hossana, hossana Filio Dei!!!
Era um momento de solenidade impressionante. À frente, dezenas de Crianças, abrindo o cortejo, com os seus ramos lindos. Depois, os homens, uns mais corajosamente, outros um tanto envergonhados, também com o ramo na mão, juntando as suas vozes em coro com as das mulheres, que fechavam a procissão, dirigida pelo pároco já ancião e doente, Padre José Maria Lopes Nogueira. Em frente da igreja paroquial desenrolava-se uma cena com o seu quê de mistério: a porta estava fechada, o pároco batia nela por três vezes, cantando palavras em Latim a que, de dentro, um dos paroquianos, Ti Iná, ia respondendo no seu “latim” possível. Depois as portas eram escancaradas e o templo ficava literalmente cheio. As Crianças tinham de ser acolhidas em volta do altar-mor, meninos à esquerda e meninas à direita. Não era fácil manter aquela garotada na ordem, por muito mais de uma hora, para desespero do velho Pároco. Ramo contra ramo, as pernas a “fazer comichão” por tanto tempo “em pé”. Havia sempre um mais maroto que tentava derrubar o ramo do vizinho e as coisas podiam “dar p’ró torto”. O que acontecia, de vez em quando…
Com alívio dos gaiatos e um respirar fundo do Padre José Maria lá vinha a bênção final, o rezar do “Angelus”, habitual, ao tempo, no fim da cada Missa e os sinos a repicarem, para só voltarem a tocar na meia-noite da Sábado de Aleluia.
Nota: Só muitos anos depois, já adulto e avançado em anos, tive curiosidade de conhecer o significado do “diálogo” de porta fechada, naquelas manhãs de Domingo de Ramos, tão do meu encanto. Para os interessados, aqui vai a explicação do próprio Papa Bento XVI.
“Voltemos à liturgia e à procissão dos Ramos. Nela, a liturgia prevê o canto do Salmo 24 (23), que também em Israel era um canto de procissão, utilizado para subir ao monte do templo. O Salmo interpreta a subida interior de que era imagem a subida exterior e nos explica o que significa subir com Cristo: «Quem subirá ao monte do Senhor?», pergunta o Salmo, e apresenta duas condições essenciais. Aqueles que sobem e querem chegar verdadeiramente até o cume, até a verdadeira altura, têm de ser pessoas que se perguntam por Deus. Pessoas que perscrutam ao seu redor para buscar Deus, para buscar seu Rosto. O Salmo 24 [23], que fala da subida, que termina com a liturgia de entrada diante do pórtico do templo: "Levantai, ó portas, os vossos frontais, levantai-vos, portas antigas, e entre o Rei da glória".
Na antiga liturgia do Domingo de Ramos o sacerdote, ao chegar diante da igreja, batia, com força, com a haste da cruz da procissão na porta ainda fechada que, após este bater, se abria. Era uma bonita imagem para o mistério do próprio Jesus Cristo que, com o madeiro da cruz, com a força do seu amor que se doa, bateu do lado do mundo à porta de Deus; do lado de um mundo que não conseguia encontrar o acesso para Deus. Com a Cruz, Jesus abriu, de par em par, a porta de Deus, a porta entre Deus e os homens. Agora ela está aberta".
(Na Homilia de Domingo de Ramos, 1 de Abril de 2009, XXII Jornada Mundial da Juventude)
Fotos de João Paulo Fidalgo e internet

quarta-feira, março 10, 2010

Ladainhas

1.Dos homens
A Primavera aí estava e o dia lá nos campos fora bem duro. Logo ao entrar da noite, os sinos anunciaram que a ladainha havia de sair. É Quaresma e é sexta-feira.
O relógio da torre comandava os actos da população, sem obrigar ao cumprimento rigoroso de horários do nosso tempo. A escuridão mergulhara a Aldeia num ambiente de mistério e cada retardatário apressava-se a chegar a casa para uma ceia frugal e rápida, que o tempo já não sobrava. Àqueles corpos cansados era ainda exigido mais um esforço. Generosamente dado. De graça. À procura da Graça.
Por isso, homens, rapazes e gaiatos, iluminando-se com lanternas de azeite e candeeiros de petróleo na mão, ou “apalpando” o chão empedrado, tropeçando aqui e ali, foram-se chegando ao adro da igreja, uns entrando, outros cá fora, para a tradição se cumprisse. E também a devoção e a fé.
A ladainha ia sair. As nove já se ouviram, lentamente batidas, rasgando a noite fria e estrelada, ressoando pelas quebradas da Serra.
Na igreja, começaram as primeiras invocações. O Ti Iná, O "Xequim Pataco", o Ti “Feduchas” e o ti Zé Oliveiros, “o Padre do Soito”, ano após ano, coordenavam e dirigiam este bem piedoso acontecimento.
- Senhor, Deus, misericórdia!
- Senhor, Jesus, misericórdia!
- Virgem Mãe de Deus e Mãe nossa, alcançai-nos do vosso amado Filho misericórdia!
A profunda escuridão da noite era quebrada pela luz das lanternas e de dezenas de pinhas acesas, nas mãos dos penitentes, ou enfiadas numa vara, prevenindo queimaduras. As pinhas haviam de durar para todo o percurso, acendendo-se cada uma na que se finava, para que a procissão caminhasse em paz e segurança, com respeito e recolhimento, pelas ruas da Aldeia. Às mulheres, meninas e meninas era vedado participar. O seu dia chegaria.
À saída da Cruz procissional, transportada por um dos homens, ladeada por duas lanternas, empunhadas por dois outros fiéis, os três vestidos com opas negras, os presentes tiravam chapéus e o cortejo seguia, com a invocação de anjos e santos, e pedidos de clemência e compaixão a Deus e Seu Filho. Era um acontecimento vivido, semana após semana, sem direcção do pároco que, se quisesse participar, o faria apenas na qualidade de simples penitente, como todos os outros crentes. Ao longo das ruas, espreitando atrás dos vidros das janelas ou mesmo de janelas abertas, iam aparecendo as caras femininas, ajudando a iluminar a noite com um ou outro candeeiro e juntando-se, de passagem, aos cânticos e imprecações dos homens, desfiando a ladainha dos santos, invocados-os um a um, num "Latim" de quem nunca o estudara, mas que mergulhava a celebração ainda no mais profundo misticismo:
- Sancta Maria!
- Ora pro nobis!
- Sanctus Josephus!
- Ora pro nobis!
- Sanctus Petrus!
- Ora pro nobis!
- Sancta Maria Magdalena!
- Ora pro nobis!
No percurso da procissão, caminhava-se, lentamente, arrastando os pés, quase em esforço, nas pedras irregulares da calçada. A capela do Pereiro, em casa privada, bem no coração da Aldeia, apareceu. Ali, uma paragem com repetidas invocações penitenciais, ouvindo-se os cânticos lentos, compassados, dolorosos, que dezenas de vozes masculinas, entoaram, de novo:
- Senhor, Deus, misericórdia!
- Senhor, Jesus, misericórdia!
- Virgem Mãe de Deus e Mãe nossa, alcançai-nos do vosso amado Filho misericórdia!
Todas repetidas. Por três vezes.
Renovaram-se os pedidos para o perdão dos pecados ou para se alcançarem graças materiais e espirituais, terminando cada um deles com ”... pelo Divino Amor de Deus, Padre-nosso”.
Todos rezam. O respeito é profundo. O sentimento também. A Fé é quase palpável!
A última etapa levou o grupo à igreja paroquial, por onde se começara. Templo repleto, as invocações, cantadas e rezadas, eram elevadas, uma vez última, aos Céus, em acto de contrição e penitência, implorando a clemência Divina uma vida melhor para vivos. E também para os defuntos.
Sem a bênção final, já noite fora, cada um voltava para casa, ainda à luz de pinhas que ardiam ou dos candeeiros e das lanternas. Em minutos, o silêncio e a escuridão cobriram toda a Aldeia. O dia de sábado também era para trabalhar. Até ao sol-pôr. E o descanso era urgente.
Nas sextas-feiras seguintes, até Quinta-feira Santa, voltariam.

segunda-feira, março 08, 2010

Serrar a velha

As geadas de Inverno haviam levantado e era grande a azáfama nos campos. As oliveiras e videiras estavam podadas, cavavam-se os terrenos das hortas e preparavam-se os campos para as sementeiras. As andorinhas haviam retornado, o chilrear da passarada alegrava os trabalhos bem duros de uma vida sempre recomeçada. O mês de Março avançara e aí estava a chegar a Primavera, onde o sonoro e feliz canto do cuco sazonal se juntava aos dolentes e tristes cantares da “Encomendação das almas” ou dos “Martírios do Senhor”, na voz dos “Cucos” residentes que, à medida que a Quaresma ia ganhando dias, sentiam que toda a Natureza tomava força para celebrar as alegrias de uma Ressurreição salvadora.
No povoado, só ficavam os velhos velhos, quase sempre avós, e as Crianças que tinham a sorte de andar na Escola. A maior parte dos "artistas", donos de pequena oficina - ferreiros, sapateiros, latoeiros, alfaiates, carpinteiros, ferradores… - só por lá trabalhavam, se fosse urgente, ou de manhã, muito cedo, ou à noitinha, depois do regresso dos campos, pois a exigência de um mundo que rebentava em novas flores e folhas e plantas novas clamava por todos os braços capazes de fazer que o renascer da Primavera valesse a pena. As bocas para alimentar todos os dias assim o exigiam. Mesmo as tabernas fechavam portas, até para depois do pôr-do-sol e só as duas lojas de comércio, onde de quase tudo se vendia, desde o petróleo e o sabão até às chitas e flanelas, linhas e fósforos, mantinham as portas abertas, muitas vezes apenas para, lá de longe em longe, se atender um freguês descuidado ou apressado.
Os rebanhos estendiam-se por todo o termo da Aldeia, levando o suave tinir dos chocalhos e campainhas a juntar-se ao alegre pipilar dos passarinhos, tornando menos infelizes os pastores, alguns deles a dever estar na escola, que ansiavam por novas oportunidades e outros horizontes. Até porque não havia rapariga que quisesse namorar… pastor. Vida “leve”, mas bem ingrata e mal querida.
Perto dos pastores, cotovias, melros, perdizes, milharucos, rouxinóis, pintassilgos, picanços, felosas, toutinegras, milheirinhas, carriças, pardais… também corvos, peneireiros, cegonhas e milhafres, tomados de amores, completavam os seus ninhos e apregoavam a esperança.
Na escola, os professores mantinham, na ordem, os alunos que mal cabiam na sala de aula, distribuídos por quatro classes, quase sempre com ajuda da régua de pinho a deixar bem vermelhas as mãos dos mais desajeitados nas contas, na leitura ou na escrita ou da cana Índia a deixar galos nas cabeças mais “levantadas” que se esqueciam de que, entre as nove e as três horas, aquilo bem “fino fiava”…
A quarta feira da quarta semana depois das Cinzas era um dos dias bem desejados por toda aquela miudagem ali acantonada nas “velhas” carteiras de uma escola nova. O edifício, pelo menos. A Quaresma “partia-se” ao meio e, quebrando o recolhimento da época, havia que ir bater latas e latões à porta das "novas" ou das já velhas avós. Era uma verdadeira “guerra ecológica”. E psicológica!
Logo a seguir ao Carnaval, cada um começava a procurar nos campos ou pelos cantos das casas, nos palheiros ou nos quintais tudo o que pudesse fazer barulho nessa quarta feira de alegria para muitos e de enorme aflição para uns poucos. A época dos plásticos ainda não alvorecera. Nesse tempo, as vasilhas eram feitas de vidro, lata, barro, esmalte, estanho e até latão ou cobre. Também de ferro, sobretudo as panelas. O alumínio ensaiava a sua aparição, mas a lata ou folha cromada e a folha-de-flandres tinham uma vasta aplicação em cântaros, baldes e caldeiros, no vasilhame dos lagares de azeite ou de vinho… Embora os profissionais do remendo fossem prolongando a “vida” dos objectos então usados com pingos de solda de estanho, “rebites” de alumínio ou lata ali feitos, na hora, e outros artifícios que a habilidade de alguns inventava, a troco de umas moeda que tinham de ser pequenas e sempre regateadas – quem não se lembra do amola-tesouras, com o seu "assobio" a "adivinhar a chuva" e a empurrar o seu pitoresco carrinho, que também arranjava guarda-chuvas, “agrafava” e "colava" pratos e alguidares de barro e afiava e encabava facas? - havia um dia em que tinham de “ir fora”, por excesso de uso e de "baixa" evidente. Um cântaro, uma braseira, um alguidar ou um caldeiro de chapa e “fora de prazo” eram, na ocasião, um “tesouro” a usar no dia de “serrar a velha".
O caminho da escola, na manhã daquela sempre desejada 4ª. Feira, tinha o seu quê de curioso. E de cómico. Um bom número de gaiatos arrastava, atrás de si, “tudo” o que pudera juntar e que fizesse barulho, amarrado num cordel ou num arame. Outros, com medo dos “saques”, deixavam as “ferramentas” em casa, ou num recanto, ao abrigo de olhares cobiçosos. Depois… só tinha de se esperar pela saída da escola.
Era como se todos os diabretes tivessem fugido do inferno para atormentar almas santas. Primeiro, as que estivessem no Povo. Depois as que fossem regressando dos campos. Latas e latões, pelas trelas dos miúdos, às vezes já grandotes, iam percorrendo as ruas de Aldeia com a monótona cantilena “Serrar minha avó, que dá ponto sem nó” e “Serrar minha madrinha que dá ponto sem linha”. Com breve paragem em frente das casas de avós e de madrinhas, toda aquela latoaria troava, batida ou arrastada nas pedras da rua ou até nos degraus das escadarias de granito que davam acesso a muitas habitações. Assim se corria toda a povoação, em alegre algazarra, para gáudio da pequenada e também de alguns adultos, que passavam ou voltavam para casa e se reviam naquela “festa”, com alguma nostalgia.
Mas...
Já todos sabiam que a Ti Perpétua, ali junto ao Largo do Rato, lhes atirava copos de água. Se a coisa fosse “bem-feita” até podia vir cântaro e água. Então era um “cruel” “ram-ram” com gritos de “serrar a velha…” “serrar minha avó…” até que a habitualmente simpática velhinha se “passasse” e ficasse sem gota da água que tanto lhe custara a trazer da fonte. E lá seguia a algazarra...
Não era “coisa” dos miúdos dos anos 50. Contava-me o meu Pai que, no “seu tempo” o Ti “Saias” atirava a tranca da porta e, depois, bem clamava para aquela doida garotada “Ai, rapazes, não me levem a minha tranca! Ai, rapazes, dêem-me a tranca da minha porta!!!”
Na essência, o “serrar a velha” era destinado a avós e madrinhas, mas se se descobrisse homem “capaz de levar à certa”… este não teria maneira de escapar à assuada dos gaiatos, que não o deixavam enquanto não o fizessem “passar do sério”. Se bem lembro… o “Tonho Caleco” não foi casado nem teve filhos e era “vítima” certa e sabida daquele dia de “brincadeira” quase sem sentido. Sim, o “desde quando?” e o “porquê?” é que eu nunca os descobri…
“Não há gaiatos maus”, garantiu o Padre Américo. Não há garotos “bons”, pois “garoto que não dá pedrada num gato… não é garoto”- garantia, numa gargalhada, o meu Pai.
O “serrar da velha” terminava com o anoitecer. O toque das Ave Marias tinha toda a força do “recolher obrigatório”. Cada um levava, atrás de si, a “lata” que juntara, agora já sem força nem efeito. Para meter em qualquer canto. Quem sabe se para usar dali a um ano…
Em Palmela, no “serrar a velha” de 2010.

quarta-feira, março 03, 2010

Um Padre na minha Juventude

Já nos meados dos anos 50, o estado de saúde do Padre José Maria Lopes Nogueira se agravara, a ponto de lhe ser fixada residência em Aldeia de João Pires, na nossa enorme casa paroquial, esta depois de muitos anos sem utilização de maior. O Padre José Maria andara por ali dezenas de anos – fundara a Banda, em 1908, fugira das iras republicanas e regressara, nos anos 20, para ficar até ao fim da vida terrena. Foi na nossa Aldeia que soltou o último suspiro e na ala central do nosso cemitério espera a ressurreição final, entre os paroquianos a quem se devotou.
Os tempos eram bem diferentes. A população das aldeias... muito densa. Os casais tinham vários filhos. Havia muitas crianças e muitos jovens e as dificuldades do dia-a-dia surgiam debaixo dos pés. A igreja, quase nova, após a reconstrução, em 1935, ficava sempre cheia, nas celebrações. Às vezes, sem capacidade de acolhimentos dos fiéis, sobretudo nas grandes festividades. As “turmas” de catequese – “vais à doutrina...”, como nos era dito – eram leccionadas, nos domingos, à tarde, para “desgosto” dos gaiatos, retirados durante uma hora, das suas brincadeiras, formando grupos repartidos pelos diversos cantos da igreja. Nem sei como era possível, mas funcionava. Não era uma catequese muito exigente no que tocava à aquisição de conhecimentos e à reflexão religiosa, mas apenas – e já não era pouco, dadas as condições de trabalho, a quantidade de catecúmenos e a “fraca” preparação dos catequistas – se cingia à memorização de fórmulas definidas pelo catecismo de S. Pio X: Credo, Pai-Nosso, Ave-Maria, Salve Rainha, Bem-Aventuranças, Confissão, Acto de Contrição, Virtudes, Dons do Espírito Santo, Mandamentos da Lei de Deus… A segunda parte deste catecismo era composta de perguntas e respostas de memorização obrigatória para quem quisesse ser considerado bom cristão. Recordo agora que, num Congresso Eucarístico concelhio, em Penamacor, no dia 14 de Maio de 1954, tendo eu apenas 11 anos, fui escolhido para representar a nossa Catequese, numa sabatina de conhecimentos religiosos, lá no Terreiro de Santo António. Quando o meu nome foi chamado para defrontar uma menina do então Vale de Lobo, subindo para junto do altar, localizado na escadaria que dá acesso ao convento de Santo António, ao avistar aquela multidão e a ter de falar para um microfone que nunca vira antes, fiquei de tal modo assustado que apenas abri a boca para... gaguejar. E “levei uma banhada”… Durante muitos anos aquela situação foi-me deveras confrangedora...
Era, pois, um adolescente, quando ao jovem padre José Martins Gonçalves Pedro, foi entregue a responsabilidade pastoral de Aldeia do Bispo, primeiro, e de Aldeia de João Pires, pouco tempo depois, já que a idade e o estado de saúde do seu antecessor tornaram a assunção das duas paróquias como inevitável.
Muito jovem, bonito, alegre e simpático fazia uma grande diferença do tipo de padres a que estávamos habituados. Entre o “mulherio” aquilo foi um sucesso e não havia quem não gostasse do novo presbítero. A entrada foi, pois, como se costuma dizer, “em grande”. Com pequenos atritos pelo meio, pois os dias finais do velhinho e muito doente Padre José Maria não deixaram de levantar alguns problemas e imposições para que “morresse em paz” e “para salvação da sua alma”.
Coincidindo com o princípio dos meus estudos em Castelo Branco, as minhas recordações da instalação do Padre José Pedro são mais que vagas e limitam-se aos contactos esporádicos, nas férias escolares. Há que salientar, neste período, a celebração das “bodas de ouro” de “A UNIÃO de Aldeia de João Pires”, em 1958, cuja vertente mais importante era (e é) a existência e manutenção da Banda Filarmónica, momento bem alto na vida da Aldeia, pelos recursos disponibilizados e actividades realizadas. O Padre José Maria falecera, pouco antes, sendo evocada a sua memória e homenageado com o descerramento de uma placa no largo que, desde então, ostenta o seu nome. Mas que, por ironia do destino, continua a ser chamado de “largo do rato”…
O Padre José Pedro, homem de ideias largas e generosas, deve ter ficado chocado com a realidade que encontrou nas duas aldeias que o Bispo da Guarda lhe confiara. Excesso de população, falta de meios, muita pobreza e, sobretudo, um enorme grupo de crianças e jovens sem esperança nem futuro. Na melhor das hipóteses, poderiam aspirar a ser guarda, bombeiro, militar ou marinheiro de “tarimba”, polícia, costureira, criada de servir… Falhando as raras alternativas, trabalhar na terra dos outros, até que a morte libertadora aliviasse a situação de quase escravatura em que se vivia, seria a única saída. Sem direito a sonhar. O Prof. Teodósio, desde 1950, vinha dizendo aos pais dos mais atilados nas contas e nas leituras e escritas “Ponha-o a estudar…” “Mas como, senhor Professor? Não vê a nossa pobreza?” À parte um ou outro garoto que a família achasse que “tinha jeito para ser padre…” de Aldeia era impossível que uma Criança adquirisse cultura fora da escola primária. E, no tempo do P. José Maria, foram 4 os jovens que “cantaram Missa Nova”, na nossa igreja paroquial. E mais um 5º. recebeu a ordenação sacerdotal, pouco depois da sua morte, com “Missa Nova” em 1959. Portanto, a única preocupação, ao tempo, com a formação dos jovens seria para dar padres à Igreja. Mesmo esse grande Homem do nosso Concelho, o Prof. Dr. António Martins da Cruz – para quando a homenagem que lhe devemos? depois de morto… aí todos serão bons!!! – começou a sua libertação pelo… seminário!
Estava destinado que seria o Padre José Pedro a dar o pontapé na “má sorte” da nossa gente. O clero do Arciprestado, quase todo nascido na década de 20 ou antes, alguns dos seus membros até já vinham do séc. XIX, não mostrara, salvo raras excepções, grandes motivações para uma pastoral de promoção social das ovelhas dos seus rebanhos. Em Aldeia, a fundação de “A União” fora uma feliz excepção à regra quase generalizada. E esta "União" tinha mais a ver com a vertente cultural do que com a social. Que interagem na construção do Homem! Com a proximidade dos anos 60, em Aldeia do Bispo, nasceu, de forma incipiente, o Colégio de S. Bartolomeu. Sem edifício próprio nem quaisquer estruturas. Não as havia. Davam-se aulas nas próprias casas de residência ou alugaram-se e emprestaram-se salas para o efeito. No ano lectivo de 1958-59, havia já umas dezenas de alunos, numa mescla bastante heterogénea de idades e proveniências, que, sob a batuta do jovem padre, em trabalho conjunto com o Prof. Joaquim Landeiro, o “Pardalito”, um “perseguido” da ditadura, iam preparando, sobretudo para os exames do 2º e 5º anos – nas duas secções – aqueles que, na generalidade, muito dificilmente se libertariam da “escravidão” em que haviam nascido. A vontade de vencer os obstáculos era muito forte e assim havia de ser. Os mais ricos começaram a ficar alarmados e as más vontades surgiram de muitos lados. Com queixas para todos com razão ou sem ela. Para o próprio bispo da Guarda. Uma rivalidade desenfreada com o Colégio de Nossa Senhora do Incenso, em Penamacor. Dois padres, à frente de dois projectos, com o mesmo objectivo. Só que os destinatários bem diferentes: para o da Vila iriam os filhos da pequena burguesia e servidores da sede de concelho e arredores; para o de S. Bartolomeu os dos camponeses, assalariados e pequenos burgueses das freguesias rurais. Houve truques e atitudes, por palavras e por obras, que ficariam muito mal em qualquer um e muito mais em pessoas que foram preparadas para anunciar e espalhar o Amor de Deus.
Mas a obra do Padre José Pedro não podia ficar só pelo Colégio. Que, aliás, tinha de ter uma entidade que o “suportasse” nas condições mais favoráveis. Assim, nasceram o Centro Paroquial de Assistência e Formação Social de Aldeia do Bispo e o Centro Paroquial de Assistência e Formação Social de Aldeia de João Pires. Com médico e consultas. Com enfermagem e tratamentos. Uma novidade, na época e na região. Aldeia do Bispo, como pólo de desenvolvimento do Sul do Concelho, é dotada com uma farmácia e um farmacêutico, que criou postos de farmácia no Salvador e no Pedrógão, um alto benefício para as populações que, antes, até por uma aspirina tinham de deslocar-se a Penamacor. Não devo andar longe da verdade se disser que, à sombra destas iniciativas e de outras, a região conheceu o período mais próspero da sua existência, que viria a "descambar" com a emigração e a guerra colonial.
O ano de 1961 foi decisivo para o projecto do nosso sacerdote. Pela força das circunstâncias, o Colégio teve de mudar de concelho, mesmo no limite, para Medelim, com o nome de Colégio de Nosso Senhor do Calvário. Com ajuda de pessoas generosas, destacando-se o Dr. António Martins da Cruz e a Família Pires Marques. Compraram-se carrinhas – numa imaginei que uma carrinha VW de 9 lugares pudesse levar tanta gente! – e depois dois autocarros, que faziam chegar a Medelim, todas as manhãs, crianças, adolescentes e jovens vindos desde a Benquerença e Penha Garcia, até Idanha e S. Miguel d’Acha. Uma coisa nunca vista nem esperada. Desta cruzada saíram muitos com novas perspectivas de vida e puderam ser professores, educadoras, enfermeiros, engenheiros, juízes, advogados, médicos... Muitos outros se juntaram para que o projecto vingasse, mas o “motor”, o cérebro, a força esteve no Padre José Martins Gonçalves Pedro. E isto, por muitas voltas que o Mundo tivesse dado depois, é que nunca poderá ser esquecido. Por ninguém, especialmente pelos beneficiados.
Exactamente em Outubro de 1961, com 18 anos, fui colocado na Escola Masculina de Aldeia do Bispo, ao tempo com 5 professores e perto de 150 alunos. Assim, tive ocasião de conhecer relativamente bem o Padre Pedro e alguns dos seus familiares. Um autêntico “furacão” na vida daquelas terras e das nossas gentes. Querido pela maior parte. Mas inimigos não lhe faltaram.
Tinha uma visão diferente e progressista do que era estar à frente de duas paróquias, com pessoas ultra-conservadoras e resistentes a qualquer mudança. Embora se vivessem tempos de Concílio, de João XXIII e de “Pacem in terris”. Este sacerdote vivia uma perspectiva inovadora – revolucionária? – das coisas, das pessoas, da Doutrina e da própria Igreja. Também de Jesus Cristo. Muito aprendi com ele. Embora não gostasse da maneira como ele conduzia o “Ford Anglia Fascinante”, primeiro, e o Mercedes depois. Sempre apressado, entrava “a matar”, na curva do lagar para virar para a igreja. Quantas galinhas foram vítimas das suas pressas. Só ELE era capaz de fazer abrir um corredor, em tempo “record”, entre os bêbedos e sóbrios que “estacionavam”, na estrada, frente às tabernas do Ti Fatela e do Ti Chico Miguel, em Aldeia do Bispo, nos domingos à tarde.
Nas aldeias, as 3 “autoridades” eram o padre, o regedor e o professor. Nunca cheguei a sê-lo, pois era um novato, enquanto andei pelas aldeias. E na cidade já a “música” era outra…
Não foi difícil, porém, tornar-me amigo do Padre Pedro. Nem posso dizer que, da sua parte, houvesse a correspondente amizade para comigo. Não era homem para isso. Estava acima de nós. Talvez sentisse por mim alguma estima e a certeza de que me encontraria disponível para colaborar com ele, lealmente e sem encargo, em qualquer missão me entregasse.
O Centro Paroquial fora criado e havia que instalá-lo. A Banda estava “de rastos” e era preciso reerguê-la. Sob a sua batuta, na sede de “A União” foram executadas obras de vulto, de forma a dotá-la com um 1º. andar. Para servir de nova sede. O rés-do-chão ficou ao serviço do Centro. Pela primeira vez um edifício do Povo, na nossa Aldeia, teve instalações sanitárias ao alcance de todos.
A vinda do Mestre Carlos Osório fez a Banda conhecer respeito e fama até antes nunca imaginados. Acontecer a publicação de um jornal, mensalmente, em meios tão pequenos? Pois, sim, tivemos o “Aldeias Unidas”, impresso lá na tipografia, em Aldeia do Bispo. Com informação e formação.
Nos seus 30 anos, admirei-o como homem e como padre. Por sua causa, eu também quis ser padre. Um segredo só de poucos mais que nós dois. “Já falei ao Senhor Bispo para se estudar a sua entrada no seminário maior, considerando a sua idade e habilitações” – disse-me numa tarde de cavaqueira e gargalhadas, ambos sentados no "Anglia". Sim, com ele aprendi as primeiras anedotas que metiam freiras. Ou padres. “Estranho” que fosse uma aluna do Colégio, "descoberta" pelo próprio Padre Pedro, que me fez mudar de ideias. Até hoje. Graças a Deus!
“A democracia barrocal” – assim classificou o povo de Aldeia do Bispo, quando discutimos a maneira de ser dos seus paroquianos de lá e de cá: era mais estimado em AJP, mas ele preferia a maneira menos subserviente e indócil dos “tchendros”. Com desgosto meu. Hoje compreendo-o melhor! “Os bispos portugueses traíram o Santo Padre”, proclamou do arco da igreja, por ocasião da ida de Paulo VI ao Congresso Eucarístico de Bombaim, de 2 a 5 de Dezembro de 1964. Era a segunda vez que um Papa saía da Europa, em 2000 anos - na primeira, também em 1964, Paulo VI fora à Terra Santa – e o P. José Pedro dera-se conta que a comunicação social portuguesa, por força da Censura, ocultara um facto que fora grande notícia em todo o Mundo livre. E o episcopado nacional “agachara-se” perante a fúria de Salazar, ainda a remoer a “queda” recente de Goa, Damão e Diu. Aquele Papa viria a Fátima, em Maio de 1967. “O sacristão de Lavacolhos”, troçava, sem qualquer caridade cristã, de um outro padre do nosso Concelho também metido em “sarilhos” de colégio. “Tenho vontade de lhe negar a comunhão”, acerca de uma senhora latifundiária que tinha varandim privativo na igreja paroquial… “Deixe lá, somos as maiores cabeças do Concelho…”, “consolava”-me pelo meu relato da dificuldade em encontrar chapéu que me servisse… Não cabem neste espaço as muitas memórias que tenho deste homem que aqui recordo e que apenas quero homenagear de maneira simples e bem sentida. Quase todas boas lembranças.
Ao fim de quatro anos, com a minha ida para o serviço militar e mobilização para o Ultramar, perdi o contacto com o Padre Pedro e com a sua Família. Estimei-os, de verdade. Algumas vezes, almocei com o Padre José Pedro, em sua casa, pois só na hora do almoço tinha algum “espaço” para lhe dar conta das obras do Centro Paroquial e das necessidades a que urgia responder. Quase sempre dinheiro. Que escasseava, como hoje! Os Pais eram uma doçura, o Senhor Jerónimo, a D. Maria Adelaide. Os irmãos Augusto, Julieta, António. Também a mais velha que pouco vi e de quem não fixei o nome. Com pena.
“Ai este filho, este filho! Nunca pára! Aquela cabeça nunca descansa”- ainda ouvi de uma Mãe, notando-lhe, na voz meiga e serena, um misto de orgulho e ansiedade. Ansiedade, sim. O coração de mãe nunca se engana. Adivinha tudo!
Por ocasião dos 100 anos da Banda, aqui descrevi a decepção que senti porque este Homem grande e frágil não foi então lembrado. Em meu entender, uma injustiça, pois a obra que fez entre nós muito o justificava. Não quiseram! “Malhas que o império tece…” ou a “memória dos homens é curta”?
Exactamente no dia seguinte ao da sua morte, em 27 de Janeiro passado, por um daqueles imprevistos inexplicáveis, soube que descansava, enfim, lá em Leon, fora do seu País e das suas terras. Do Sabugal, onde nascera. Das “Aldeias Unidas”, como ele as quis e engrandeceu. Na honra e no proveito.
Curioso! Não lhe devendo nada de material, sinto que lhe ficarei a dever muito na minha certeza de continuar a ser cristão. A minha maior riqueza.
Obrigado, Padre José Pedro. Nunca o esqueci. Agora sei que nunca o esquecerei. Um destes dias vamos encontrar-nos. Desta vez será para sempre.