quarta-feira, setembro 08, 2010

Baile na Aldeia - 5

8 de Setembro de 2010. Ali estive eu, no adro da igreja, como há quase 60 anos atrás. A casa da senhora Hermínia desapareceu, o adro agora todo calcetado alargou, a fachada da igreja vê-se, assim, da estrada, por detrás da bem antiga fonte, mesmo ali à beira. Mas foi esta a mudança menor, ocorrida nestas dezenas de anos. Avós… estavam lá e eu fui um deles. Pais… sim, a minha Filha e os filhos dos meus amigos. Netos… os nossos e bem poucos. Não há Crianças na Aldeia. Não há cheiros. Nem sons. Nem cores. Nem sabores… Temos a Banda, mas tão diferente. Para melhor, confesso. Bem afinada, muita gente nova, de quase todo o Concelho, uma boa parte dos executantes são Meninas. E o baile? Nem um par se disponibilizou. A saudade, essa sim, abundou e sentiu-se em todos os rostos, lá bem no fundo dos olhos ou em gestos exuberantes, no reencontrar, ali, de amigos que não via há mais de 40 anos… E outros a quem falara no ano passado… E também a enorme saudade dos Avós e Pais que o eram, há muitos anos atrás!
Estava-se em meados da década de cinquenta, ano de 1956, exactamente. Nas margens da Ribeira e em volta dos poços e represas alimentadas das muitas nascentes então a dar vida a uma terra que tanto agradecia o trabalho e a água, as hortas vicejavam, aqui e ali enriquecidas pelos vultos das melancias, dos melões e das sempre úteis abóboras. Uma festa para os olhos e para o sabores. Debaixo das sobreiras e oliveiras montes e montes de canas de milho, cortadas aqui e ali, eram descamisadas e as maçarocas doiravam as amplas eiras, na esperança de uma compensação para tanta canseira. Os bandos das meigas rolas, já quase em véspera de abalada para novas terras, ainda por ali arrulhavam, na sombra, batendo as asas, em desespero, quando um ou outro caçador disparava aqui ou ali, à procura de um petisco. Com a partida das andorinhas, os numerosos "taralhões" e as "rabitas" estavam a chegar, invadindo os campos com a sua presença e enchendo os ares com o seu típico "chilreio", para serem vítimas fáceis das armadilhas dos predadores de duas pernas... Dezenas e dezenas de figueiras davam frutos para pessoas e animais e eram também estendidos sobre palha nova centeia, ou nas varandas e tabuleiros de madeira para secarem e fazerem alegrias lá para os Santos. E mais p’ra diante. Nas muitas vinhas de então as uvas eram apanhadas e nos “pios” de granito, homens de calças arregaçadase e pés descalços para as esmagar, subindo no ar o cheiro acre-doce do mosto a fermentar, prenunciando alegrias e também disparates lá pelos dias de S. Martinho. As fogueiras, por debaixo dos alambiques de cobre, faziam soltar os vapores de álcool, a dar aguardente que faria festa de poucos e tristeza de muitos. Castanheiros, de amplas copas, dobravam os ramos ao peso dos ouriços, fazendo adivinhar um Outono farto de magustos e um Inverno de preocupações aligeiradas. A castanha ainda matava a fome a muita gente!
As aulas, nesse tempo, começavam em Outubro e o mês de Setembro era o mais escolhido para “gozar férias” na Aldeia. Desde o primeiro dia deste mês – outros já na 2ª. quinzena da Agosto - que os “papafigos” estavam chegando, de comboio, a Castelo Branco, nas camionetas do “Martins Évora” até ao destino final. Gente nova, quase sempre com filhos crianças a juntarem-se às muitas Crianças que cá viviam durante todo o ano. Era bem animada a chegada das camionetas da carreira, pelas 8 e pelas 19 horas de cada dia, sem grandes preocupações de pontualidade. Quase a transbordar, com as bagagens mais simples ou esquisitas a ocupar espaço, ao sol e à chu
va, lá por cima do tejadilho daquele vagaroso e precioso transporte de passageiros.
Os “papafigos” agora de regresso temporário, haviam rumado à Cidade, na busca de uma vida mais "limpa", “à sombra”: ofícios de guarda, polícia, carteiro, bombeiro, militar do exército ou até da marinha, raramente para os aviões ainda escassos. As esposas ocupavam-se, habitualmente, das lidas de casa e dos filhos, com jeito para a costura, se possível a ganhar algum dinheiro, fazendo os mesmos trabalhos na casa de outros que os pudessem pagar. Portanto, aquele período era o mais escolhido para “descansar”, havia a fartura das hortas, das vinhas e dos pomares, e também para ajudarem os pais e familiares nos trabalhos mais agradáveis do ano, os das colheitas. Outro motivo bem forte era que, no dia 8, se reunia a grande família de Aldeia para a celebração da festividade de Nossa Senhora da Graça. Feriado e “Dia Santo” paroquial, a passar de geração em geração. Até hoje, sem se “render” à “mais valia” que a festa no fim de semana poderia trazer com mais uns trocos!
De véspera, os trabalhos no campo eram aliviados. Os fornos de “baixo” e de “cima” tinham um dia de eleição: alguns tabuleiros de “pão trigo” e bolos, muitos bolos, para irem até ao “ramo” de oferendas no dia da festa ou para serem consumidos, em casa, pelas famílias: “pães leves”, esquecidos, borrachões, bolos de leite, biscoitos… O belo galo que, durante o Verão, como se adivinhasse, tanto fizera, com “có-có-ró-có-có”s de encantar, para levar as galinhas a garantir a continuidade da espécie, tivera o destino para que nascera, a panela ou
o tacho, mesmo o forno. Na sua ausência, uma galinha que se fora esquecendo do dever de pôr ovos ocuparia o lugar para fornecer a uma canja bem saborosa e um sempre desejado “fricassé”. Dos “talhos" do Ti Domingos e do Ti “Sacoto” ou dos do Ti Xico Miguel ou Ti Zé Rolo, estes em Aldeia do Bispo, haviam de sair pedaços de chibo, de cabra, de ovelha “badana” ou de carneiro para serem utilizados em aprimorados cozinhados, juntando-se o seu odor aos cheiros dos mostos, do pão e dos bolos acabadinhos de sair do forno, das aguardentes, das flores que enfeitavam as hortas e coloriam casas e altares, das eiras, das cortiças e até das terras molhadas com as primeiras chuvas, a fazer tapar, em momentos de aflição, os figos que secavam sobre “passadeiras” de palha e também as vagens e maçarocas estendidas nas eiras. E ainda aquele inesquecível perfume, de manhã cedo, das ervas secas molhadas pelas primeiras maresias de um final de Verão que se aproximava, a passos largos.
Na véspera, pelo escurecer, uma descarga de foguetes prenunciava para a Comunidade em festa e para as terras da vizinhança que, desde há muito, 8 de Setembro tinha de s
er diferente, em Aldeia. Também o som dos morteiros e o cheiro da pólvora aconteciam. Podia dizer-se que, depois da chegada da camioneta da tarde, trazendo os retardatários, a Aldeia estava cheia como um ovo. Nem se sabe como se acomodava tanta gente!
Era uma noite bem diferente, bem festiva, cumprimentos e abraços, conversas de pé ou sentados nos “baturéis”, nas escadas e nos balcões de granito, nas soleiras das portas, noite fresca. Só os pastores, que pelo entardecer, haviam recolhido os seus rebanhos, tilintando chocalhos e campainhas por aqui e por ali, não haviam de ter lugar, em plenitude, na alegria geral. Que era de quase todos. Raramente deles.
Por fim, a escuridão de uma noite, na Aldeia, em que a energia eléctrica era desconhecida, tomou conta de tudo e de todos e aquela gente adormeceu.
O autor relata acontecimentos vividos por si mesmo, a que junta a liberdade de os recontar a seu gosto.
Para hoje, com a devida vénia, um excelente trabalho de Rui Canas Gaspar, no 5º. Festival de Bandas de Setúbal, a Cidade que muito amo e me acolheu por mais de 34 anos de trabalho docente, distinguido com a "Medalha de Ouro da Cidade", em 2000.
Lá volto, sempre que posso, com alegria e enorme prazer.
Oferta para os meus queridos "Cucos". Vós mereceis!
A nossa Banda não está aqui presente e passará, no episódio que se seguir...

7 comentários:

prohensa disse...

Quantas mudanças se alteraram nas nossas aldeias nos últimos 50 anos!...
Como estarão elas daqui a mais 50?
Receio que jamais voltem a ter as ruas cheias de gente, como as dos tempos que relata!... Mas de uma coisa tenho a certeza, mesmo que voltem a povoar-se, perdeu-se para sempre o modo de vida que o Professor aqui, tão bem, nos relata. As casas podem voltar a ter pessoas mas os campos e as ruas nunca mais terão a vida desses dias... Há uma cultura e uma forma de vida que se perderão, irremediavelmente, quando morrerem as últimas pessoas que viveram esses tempos...
Obrigado pelas suas memórias.

Zé Rainho disse...

Meu caro amigo e colega Serrano,
Não imagina como me sinto feliz ao ler um relato tão minucioso de festividades de outros tempos. Recordações que não retenho, por motivos seus conhecidos, mas que me deixam extasiado. Que memória fantástica!
Só mais uma achega: Parabéns pela medalha de ouro de Setúbal. Só mostra o reconhecimento pelo trabalho desenvolvido. Pena que "santos da porta não façam milagres" e não seja reconhecido de igual forma na terra que o viu nascer e crescer.
Parabéns
Abraço amigo.
Caldeira

Unknown disse...

Meu Caro Amigo,
Aos poucos tenho lido, como sempre, os seus contos vividos.É com alegria que os leio e com tristeza que sinto o mesmo que o Sr.Prof.Caldeira. Na sua terra mantiveramo mês de Setembro para a festa de Nossa Senhora da Graça, na minha, alteraram o são Tiago para Agosto por causa dos emigrantes, linda a procissão ao lusco fuscosuilik com os foguetes de lágrimas a cair. Gostei dos "papafigos" , não me lembro de os chamarem assim. Volto a insistir numa compilação destas histórias. Continue sempre, com Amizade , Maria

Zé Morgas disse...

Olá Professor Serrano
Tire-me aqui uma duvida:
cal-cetado = calcetado; empedrado
possí-vel = possível
Será que o "traçinho" está a mais nas duas palavras?
Abração amigo
Zé Morgas

António Serrano disse...

Pois!
Agora está melhor!
Com a tua ajuda, caro Zé Morgas!
Aproveito para agradecer a todos os visitantes, de modo especial aos que me incentivam. Tenho a convicção de que não existe qualidade, mas a necessidade de preservar a memória, pois os que se lembram de tudo isto vão desaparecendo. E há outros com "melhores" recordações ainda, mas que pensam que não são capazes de as escrever. Atrevido, eu lembro-me de muitas coisas e tento fixá-las no texto escrito. Na forma de que sou capaz.
Abração, com a estima de sempre.

Luísa Antunes disse...

Nem sei que dizer!... De repente, apeteceu-me um bolo de leite, um borrachão e... uma cavaca gigante!... Este Setembro, hoje, está agradável para a boa companhia de chazinho, bolos, gentis recordações e boas memórias... Eu volto cá, que hoje só me fiquei pelo cheiro dos bolinhos e o sabor da sua linguagem!... Ummmhhh!.. saboroso... Bjnhos

Maria Helena disse...

"Cheiro dos bolinhos, sabor da linguagem e doçura do som". os comentários são gentis, seguidos de um texto gostoso e alegre. O encanto pela simplicidade e a alegria pelo dom de viver simplesmente, eu que não estava presente nos eventos, já me incluo pela sua lembrança. Bem dizem que recordar é viver, com um redator perspicaz, recordar é compartilhar canções, corações e almas. Este planeta é mesmo uma Aldeia . Estou aqui e aí, onipresente. Isto é magnífico