segunda-feira, dezembro 19, 2011

Dia de Natal, por António Gedeão

Dia de Natal
 
Hoje é dia de ser bom.
...
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.

É dia de pensar nos outros— coitadinhos— nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.

Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
Entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor
anuncia o melhor dos detergentes.

De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu
e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.

Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra— louvado seja o Senhor!— o que nunca tinha pensado comprado.

Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.

Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha,
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.

Ah!!!!!!!!!!

Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.

Jesus
o doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.

Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
Tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.

Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.

Dia de Confraternização Universal,
Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.

terça-feira, dezembro 06, 2011

A saúde na Aldeia 2

- Maria, então o burro? Já deste de comer ao burro!!! 
Foi assim que, no dealbar da segunda metade do século XX, a população, a beber água de fontes e poços contaminados, se encontrou vítima de uma epidemia de febre tifoide, que só não causou uma calamidade porque os antibióticos estava a chegar ao nosso Concelho e ao seu Hospital de Santo António.
- Ai, filho, esta febre não é normal. Trinta e nove graus!!! Mas que fizeste tu…
- Tanto frio, Mãe. Ponha-me mais um cobertor…
A noite foi longa e mal passada. A custo se pôs de pé. A Mãe “esqueceu” o trabalho e a camioneta da manhã levou-os até à Vila.
Ouvida a história da “excursão” do dia anterior, o médico tentou não dramatizar a situação. "Aquele calor, aquela água fria,  esta rapaziada não ganha juizo, pode ser uma pneumonia…"
- Tenho o hospital cheio e não te posso internar, mas isso vai passar; és novo e p´rá semana já andas a correr e saltar. Lá vão quatro injeções de 300.000 UI de Penicilina…
– Penicilina?!  O que é isso?! As injeções doem? Quem é que vai dar?
- Lá na Aldeia, a Menina Maria Adelaide parece que sabe alguma coisa… - adianta a Mãe.
- Quanto é Sr. Doutor?
- São "só" vinte escudos.
Receita aviada:
- São "só" trinta escudos...
 Regresso de táxi:
-  São "só" vinte e cinco escudos…
A Menina Maria Adelaide Simões era um anjo na nossa Aldeia. Catequista e "enfermeira". Gratuitamente, tratava de tudo e de todos: cabeças partidas, cortes de faca ou de podoa, pensos, unhas encravadas, calos dolorosos... lá ia o pessoal em procura de cuidado. Com o aparecimento das primeiras injeções também ela quis "aprender a dar" e lá tinha a sua caixa de seringas e agulhas que, fervidas, serviam para toda a gente. Embora, nesta área, a “clientela” não fosse muita. Injeção, traseiro à mosta, "antes morrer"...
E tanto fazia o seu trabalho em casa de sua mãe, onde vivia, como nas humildes moradas dos doentes, se a deslocação destes se tornava muito difícil.
Quatro dias e quatro doses de Penicilina depois a situação não deu sinais de melhorar… A febre atenuava, mas voltava. Sempre alta…
Era forçosa nova ida ao médico. Que, ao ver o doente, fez "cara feia" e torceu o nariz. No entanto, nova receita, novo acreditar no que "estava errado" e, com idas ao médico e vindas do médico, se esgotam quase duas sofridas semanas. 
- Não há volta a dar... tenho de te internar. Ficas deitado numa maca e depois logo se vê. Vamos tirar sangue e e recolher fezes para mandar para Castelo Branco para fazerem análises e termos a certeza do que tens... É capaz de ser o tifo. Anda por aí e tenho lá vários doentes… Quando houver vaga… terás uma cama… Para já vais comer muito pouco: aguinha de canja e nada de alimentos sólidos… Muito gelo na barriga. De três em três horas o saco de borracha tem de ser mudado.
Não foi fácil a separação da mãe e do filho. Coração de mãe adivinha sempre!
Feitas as recolhas para as análises, enviadas pelo correio, com resposta a ser dada também pelo correio. Podia demorar oito dias. Em casos de gravidade comprovada quatro ou cinco. Pelo telefone.
Já numa cama da “enfermaria dos homens”, um enorme salão com duas filas de quinze a vinte camas, cabeceiras encostadas às grossas paredes, enormes janelas envidraçadas,  a privacidade nos tratamentos era conseguida com a colocação de biombos.
O estado do doente piorava, desesperadamente. Nada detinha aquele febrão. Na ausência de medicação adequada por dúvidas no diagnóstico… o "estado de coma" não se fez esperar três ou quatro dias depois. Aquela mãe, sem falhar uma hora da “visita a doentes” sente que só Deus e ela podem salvar um dos filhos do seu coração. O idoso enfermeiro não tinha condições para cumprir as mudanças regulares do gelo sobre a barriga do paciente. Conseguiu autorização desesperada para pernoitar junto da cama do enfermo. Numa cadeira. De três em três lá vai à “casa do gelo” encher o saco de borracha. Sem falhar, passando pela “casa mortuária", apesar do “medo dos mortos" que sempre apregoou. De Castelo Branco os resultados das análises são dados pelo telefone. Febre tifoide em estado de enorme gravidade. Era preciso “atacar”… Um novo antibiótico, o Cloranfenicol, é aplicado com regularidade, apesar e por causa da situação do doente. Antibiótico de oito em oito horas  e gelo de três em três . Ninguém desiste, mas o estado comatoso não se altera. Só um milagre. Que era pedido com insistência. Com Fé. Com Esperança…
Ao sexto dia “ausência” o jovem abre os olhos e ouve-se num leve murmúrio:
- Mãe, onde estou?!
Depois o milagre, a juventude e o querer viver fazem o resto. Emparado, reaprende a caminhar e foi um longo período de recuperação. Mais de um mês.
- Maria, então o burro?! Dá de comer ao burro!!!
A exclamação de desespero ouvia-se por toda a enfermaria, despertando sorrisos compassivos ou comentários cínicos.
- Quem é?! Que quer ele?!
Um idoso de Pedrógão havia sido internado, dias antes, em estado grave. Pela doença e pela idade.
No entanto, fruto de uma convivência de muitos anos de trabalhos e cumplicidades não havia de  esquecer o velho e fiel amigo, naquela hora difícil.
- Maria, então o burro? Já deste de comer ao burro? – ainda se ouviu durante uns poucos dias, a voz cada vez mais frágil. O amigo ainda e sempre a não esquecer o seu amigo. Os sorrisos trocistas foram-se acomodando e aquela gente que vivia, muitas vezes sobrevivia, do trabalho e companhia de tão manso animal, acabou por sentir a mágoa daquele homem e foi-se-lhe associando num misto de ternura e cumplicidade, agora sem os sorrisos de mofa.
- Ó Maria, então o burro? Dá de comer ao burro… - ouviu-o ainda no anoitecer daquele dia de fim de Verão.
Depois teria a certeza de que o Ti Cardoso levara a lembrança do seu burro até ao último minuto da sua consciência.
E o ti Cardoso lá foi. De forma diferente daquela como entrara, já tão débil. Agora sem dores nem saudades do seu burro...
O jovem ainda por ali ficou, até ao princípio de Outubro. Recorda, até hoje,  o carinho das gentes de Penamacor, da visita em quase romaria ao seu hospital, aos seus doentes, todos os domingos, após a saída da Missa do meio-dia, com um sorriso nos lábios, a perguntar de cama em cama:
- Então, está melhor?!
Outros tempo de solidariedade e Caridade!!!
E, convictamente, o comentário de “coitado, tão jovem, não escapa…” a transformar-se num sorriso de ”olha... temos homem!; do que tu te livraste!”…

Em memória da minha Mãe. E do meu Pai.  Da minha Avó Emília. Aos meus Irmãos.
Lembro ainda o Povo da minha Aldeia, sempre solidário; o Dr. António Moutinho, rezingão e teimoso, mas que soube depois "portar-se  bem"; o senhor Arciprestre P. António Baltasar, que me "ouviu" de confissão e administrou a Santa Unção e sempre que podia ali se fazia presente; o Enf. Sr. João, que faleceu pouco depois de doença que "adivinhou; a enfermeira "Menina" Lia, da "enfermaria das mulheres," mas atenta; a prof. D. Olívia e Prof. Armando, que colocaram o seu carro ao dispor e se tornaram discretamente sempre presentes; os meus jovens amigos de Aldeia que levaram a cabo a peça de teatro que vínhamos ensaiando em que o "artista principal" - diz o Jorge, "era eu"...
Ai a Juventude!!! Temos de dar um passo em frente: vida militar e vida profissional. Até qualquer dia... se Deus quiser. Obrigado por terem chegado ao fim. O história do burro foi verdadeira. Como o resto.
Fotos da internet. Uma especial do meu Amigo Zé Morgas..

A saúde na Aldeia 1

- Ó Maria, então o burro?! 
Num Verão quente, aquele dia 14 de Agosto abrasava. O grupo há muito que  planeara o passeio. Sem os Pais darem conta pois, nesse tempo, os 18 anos não serviam de carta de alforria para que cada um fizesse o que lhe desse na gana... Bicicletas próprias ou tomadas de empréstimo, depois de jantar pelo meio-dia, Sol a pique, aí vão eles a caminho da vizinha freguesia de Salvador. A estrada macadamizada era uma desgraça, mais terra com buracos do que pedras, quase sempre soltas.
Logo a seguir à de Aranhas,  sempre a subir, suor a escorrer em bica pelas testas e faces avermelhadas, a boca seca, seca e as forças a faltarem, encostaram numa sombra e disse um deles:
- Não consigo mais! Preciso de água… água bem fresca!
- Mas onde?
- A serra é farta e há sempre uma fonte…
Realmente, a água fresca e cristalina a jorrar estava mesmo ali, à beira do “caminho” e foi beber… beber… dessedentaram-se, refrescaram-se …
Umas muitas pedaladas até lá acima a esgotaram-se as forças. Depois foi só a descer. Estavam no Salvador. Faltava o regresso…
Naquele tempo e em férias, a juventude abundava por estas  aldeias da Beira interior e havia sempre conhecidos, familiares e amigos. Um pouco de conversa, bebidos uns pirolitos e umas laranjadas e o regresso teve de fazer-se. Mais penoso, as forças a faltarem…
Já o Sol abrandara o seu calor e a tarde caminhava para o fim, quando ele, cambaleante, entrou em casa. Apesar do calor, o frio subia-lhe pela espinha e tremia. Que frio!
- De onde é que vens? Que maluqueira foi esta? Que te aconteceu? Ai filho, filho, quando é que tomas juízo?!
Não era fácil a vida dos nossos camponeses. Trabalhar sempre. Mesmo com poucas forças. Só nos domingos e dias santos algum alívio…
As doenças não eram raras e o tratamento quase sempre de curandeira e de tradição. Chás das mais variadas espécies das nossas ervas, cada qual para um dado efeito, água de malvas, “unto sem sal”, rezas e benzeduras, defumadouros, “aguardente queimada” com açúcar, “escalda pés”, “suadouros”, vinho quente,  ventosas, sangrias... Nascia-se e morria-se, por vezes, sem ter conhecido o médico.
 Logo no nascimento, o delicado trabalho era acompanhado pela “parteira” da terra – a Ti Matilde – uma “curiosa” que “recebia” grande parte da garotada aqui na Aldeia. A parturiente ficava em pé, a criança era recolhida numa toalha e “Deus punha a mão”. Depois a avó, a ti Matilde e a jovem mãe haviam de conseguir… Tudo feito sem qualquer preparação científica, sem uma análise, sem um exame, sem uma ida ao médico, antes acreditando no saber a passar de geração em geração e pondo-o em prática. E em Deus e em Nossa Senhora da Graça. Se fosse preciso chamar o médico… a coisa podia estar feia e quase sempre acabava mal.
Assim começava a vida de mais um bebé na nossa Aldeia. Se a mãe tivesse leite, o futuro dele seria menos complicado, nos próximos dois anos. Sim, mamava-se até com dentes - era uma grande sorte, o mais fácil e estava sempre ali à mão. Complicado, complicado era mesmo a falta da mama. A procura do leite de vaca, de cabra, de ovelha e até de burra, no Verão, era muito, muito difícil e arranjar o precioso líquido uma dor de cabeça. Tinha de ser procurado por toda a povoação, pois a maior parte dos animais, em gestação, estava "seca" . Funcionava então a solidariedade e o alimento do bebé havia de aparecer.  Tal leite  era "forte" e tinha de se "desdobrar" com água fervida. As condições de higiene eram mais que precárias. O leite em pó só aparece na década de 50, assim como os primeiros biberons e tetinas. Tudo muito simples, quase artesanal. Não havia esterilizadores, não havia saneamento básico nem água canalizada. As condições higiénicas e de salubridade das nossas povoações  eram muito precárias e a criação de animais dentro e em redor das aldeias e até vilas só piorava a situação. Fontes e poços de mergulho, com a água a escassear, no tempo quente. Um autêntico tormento. Febres intestinais e diarreias. Maleitas provocadas pela picada dos mosquitos. Espécie de paludismo... “Anda aí uma ‘malina…’”- dizia-se, em tom de alarme. Não é, pois,  de admirar que, no cemitério, houvesse um talhão para “os anjinhos”. Logo à entrada.
No entanto, muitas Crianças  iam “escapando” e crescendo num verdadeiro milagre que só as leis da Natureza poderiam, talvez, explicar. Acompanhavam os pais nos trabalhos dos campos, bebiam água das fontes e dos regatos, dormiam à sombra das árvores mais frondosas e, muito cedo, começavam a comer dos parcos alimentos dos seus progenitores. Desde muito pequeninos ajudavam nas tarefas domésticas e rurais, dando assim valor ao esforço familiar e construindo laços indestrutíveis que só a solidariedade pode originar. Era comum ouvir-se “de pequenino se torce o pepino” ou “o trabalho do menino é pouco… quem o perde é louco”! E de exploração do trabalho infantil nunca alguém se queixou...
Em tais circunstâncias, a maior parte da garotada entrava na Escola – sempre 7 anos completos – sem nunca ter sido vista por um médico, a não ser  que corresse perigo grave. Eram frequentes os casos de raquitismo e subnutrição e um harmonioso desenvolvimento físico e mental daqueles seres em formação era bem complicado. À medida que a Criança crescia aí vinham as chamadas doenças infantis e poucos escapavam ao sarampo,  varicela, rubéola,  papeira ou trasorelho  (”zarelho” como era chamado por aqui…), à tosse convulsa, dores de ouvidos e de dentes, quase sempre suportadas com enorme estoicismo e sofrimento, até “à cura”... Na época adequada, as gripes e as constipações eram generalizadas – as formas de combate e cura eram desconhecidas e o contágio praticamente inevitável. Na melhor das hipóteses, um comprimido de aspirina  aliviava a situação.
Nem a paralisia infantil deixou de passar por aqui e deixar vítimas.
Os doentes mentais não tinham possibilidade de qualquer apoio e, frequentemente, eram alvos das brincadeiras e da chacota dos que se julgavam mais “espertos”…
Numa altura em que os insecticidas não eram conhecidos e muito menos estavam divulgados, arranjavam-se expedientes caseiros para a luta contra a bicharada que atacava animais e pessoas, nomeadamente os piolhos, as carraças e as pulgas. Por esta época aparece o DDT, um veneno poderoso e muito tóxico, soube-se depois, mas que se tornou um poderoso auxiliar para tornar mais justa uma luta desigual e quase sempre perdida pelo homem contra tais inimigos.
Também se torna presente a vacina contra a varíola e vem até à Aldeia a carrinha volante do IANT para despiste da tuberculose e seu combate com as “micro radiografias”, a “prova da tuberculina” e a vacina BCG… A saúde oral era o bem “desnecessário” e só para arrancar os primeiros dentes definitos, já em mau estado, se acorria  ao barbeiro, o Ti Guerra, ou a um “mecânico dentista”, militar do nosso Exército, que muitas vezes faziam a extração a “ferro frio” por não haver anestesia ou dinheiro para ela. Uma crueldade necessária, mas incompreensível nos dias de hoje. Era apenas aqui o único meio de aliviar, de vez, uma dor de dentes atroz... Dá-se início a alguns tratamentos de dentes, os “chumbados”. Enfim, uma vida de trabalhos, sofrimentos, sem direitos nem pensões, sem abonos de família nem médicos, sem centros de saúde nem comparticipações nos remédios poucos que se compravam, época em que a sobrevivência dos mais velhos era assegurada pela a generosidade e gratidão dos  filhos. E até de uma vizinhança solidária que sabia que havia de chegar a ocasião de também vir a precisar e que a ajuda mais rápida  haveria de estar ali ao lado, no vizinho. Quase todos  teriam histórias  de dores de cabeça, de dentes, amigdalites, constipações, gripes a serem “curadas” com “aguardente queimada”, vinho quente com açúcar ou mel, ou com  “pingo” de toucinho, suadouros, ventosas… e até “bichas” (sanguessugas) deitadas para tirar o “sangue mau”… E também se morria... Mesmo  na morte o pobre continuava sempre pobre, pois os cadáveres podiam ser deitados na sepultura embrulhados num lençol ou metidos num caixão de "quatro tábuas" pregadas. O famoso "remédio" das "quatro tábuas" que tudo "curava...
Fotos retiradas da internet e Carlos Paião do Face Book. Homenagem ao artista e ao médico dedicado.

sábado, novembro 12, 2011

Affôôô!!!

- Affôôô!!!
A voz ressoou cristalina, cristalina e  pura como só a dos anjos pode ser e atravessou o ar, as agulhas dos pinheiros e as folhas das sobreiras, no sossego desta manhã cinzentona de Outono e a horas que só os sábados permitem, dando descanso aos pais e folga às escolas. Os pássaros calaram-se, no receio de quem lhes pudesse conquistar o lugar e a vez e o silêncio desta "aldeia" em que vivo tornou-se mais cúmplice, naquela cumplicidade que só os que alguma vez o escutaram podem entender. De novo, aos meus ouvidos a música do meu encanto.
- Affôôô!!!
O coração em sobressalto, espreitei. Espreitei e vi dois olhinhos vivos, um sorriso de sonho e um acenar de mãozinhas que tão bem conheço. A minha Neta. Uma das minhas Netas.
- Affôôô!!! - ainda um chamamento doce e amorososo que apenas os Netos sabem fazer e os avós sabem escutar.
Ao almoço, por Graça de Deus,  haveria de ter a companhia dos que puderam estar presentes. Cinco! E a grande saudade de mais um, lá bem longe, mas também no nosso coração. No meu e no da Avó.
Foto de Wikipedia
Música para os meus Netos.

terça-feira, novembro 01, 2011

Foi há seis anos... no Dia de Todos os Santos...

Iniciei este  blog, modesto trabalho, faz hoje seis anos, com a versão de S. Marcos das Bem Aventuranças. Pela graça de Deus hoje aqui trago a do
Evangelho segundo S. Mateus 5,1-12a.
Naquele tempo, ao ver as multidões, Jesus subiu a um monte. Depois de se ter sentado, os discípulos aproximaram-se dele.
Então tomou a palavra e começou a ensiná-los, dizendo:
«Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu.
Felizes os que choram, porque serão consolados.
Felizes os mansos, porque possuirão a terra.
Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
Felizes os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
Felizes os puros de coração, porque verão a Deus.
Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus.
Felizes os que sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o Reino do Céu.
Felizes sereis, quando vos insultarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por minha causa.
Exultai e alegrai-vos, porque grande será a vossa recompensa no Céu; pois também assim perseguiram os profetas que vos precederam.»
Foi há seis anos!O tempo voa e só levamos mesmo o Bem que praticámos. Ou o Mal. A decisão é nossa.

quinta-feira, outubro 20, 2011

Instrução, Educação e Informação em Aldeia - 2

4. A Casa de Trabalho
Jovens nascidas em meio rural profundo e criadas no campo, podiam fazer toda a sua vida sem horizonte que fosse para além de Monsanto ou de Penamacor. Grande parte das nossas adolescentes não frequentava a Escola e, assim, nasciam como “bichos” e quase como “bichos” cresciam e viviam. O seu “saber” não poderia estar muito além daquilo que, de suas mães, avós e vizinhas tinham aprendido. Portanto, uma educação e instrução reduzidas ao mínimo. Mas não quero confundir educação e instrução, pois educação não faltava, à nossa maneira.
Nesse tempo, a nossa Aldeia dispunha de um “elite” burguesa ligada à exploração dos campos e dos que neles suavam e calejavam de sol a sol. Vou dar mais relevo aos jovens filhos da Casa Grande. Haviam frequentado outras escolas,  “tocavam piano e falavam francês”. De regresso ao lar paterno, à espera de casamento que lhes abrisse as portas de um mundo que se lhes descortinara, sensibilidade bem mais aberta que a dos seus progenitores na relação com os seus desafortunados conterrâneos, assentaram que era possível dar algo de melhor e diferente, um pouco de sonho e de magia à nossa gente nova. Assim, nasce a Casa de Trabalho, local de formação e doutrinação. Destinada exclusivamente a ser frequentada pelas nossas jovens, ali se ensinou e se aprendeu a falar melhor, a cantar, a representar, a bordar, a dançar, a "saber estar"... Como na UNIÃO ali se fez teatro de variedades. Numa rivalidade nem sempre sadia, chegou a haver estreia de espetáculos, em simultâneo, na mesma noite. Esclarece-se que a União acolhia os rapazes e a Casa de Trabalho recebia as moças.
Num tempo em que os bailes eram frequentes, a incompatibilidade entre as duas situações várias vezes foi notória, dando origem a questões entre familiares e namorados.
No desenvolvimento das atividades da Casa de Trabalho notabiliza-se, de novo, a Senhora D. Gervásia, como era de todos conhecida e por todos assim tratada, e a das Senhoras/Meninas das casas maiores.
O rigor na gestão desta Casa de Trabalho era de tal maneira que, no fim das atividades, pela noite dentro, cada jovem era entregue, pessoalmente, aos seus pais, em sua casa. Não fosse “o diabo tecê-las”…
Outros tempos, outros educadores, outras responsabilidades. Do oitenta para… o oito!    
5. Os comediantes
Apareciam, de vez em quando. Artistas pobres para gente pobre. Quase sempre um grupo familiar, palmilhando caminhos e estradas, de terra em terra, em busca de quem com fome lhes matasse a fome que traziam. Na Aldeia, havia sempre uma loja ou um palheiro a que se acolhessem. As “comédias” apresentavam-se quase sempre ao ar livre, roda de gente sentada no chão ou de pé, à luz de lampiões, lanternas e candeeiros. O “Petromax” já era de gente mais “rica”. No largo da Fonte ou no Largo do Pereiro. Aqui, a loja da Ti Emília Cartola, coração grande e generoso, servia-lhes de poiso e camarim. As habilidades de uma contorcionista menina, ossos a querer saltar da pele, ou uma rapariguinha, quase envergonhada de mostrar as pernas àqueles olhos gulosos, equilibrista numa tábua sobre um rolo em cima de uma mesa emprestada. O rapaz malabarista com as bolas ou archotes a "espantar" a nossa gente. A mãe e o pai a fazerem de quase tudo: truques de magia que soltavam ohs!!! de espanto, e o mais apreciado de todos os números, o dos palhaços, com brincadeiras divertidas  alguma piada dirigida a membros da população – a informação era mais discreta do que a dos nossos SI's… - e com números simples e divertidos, que se fixavam nas memórias dos populares, por muito tempo:
- Ó Zé B’roa, ó Zé B’roa, olha o pau, olha a moca!!!
Este e outros motes seriam repetidos pela garotada e pelos adultos, até à exaustão.
Também por esta via chegavam à Aldeia as canções da cidade. Sem acompanhamento musical ou com ele. Trompete, guitarra, realejo. Ou a solo. Com os palhaços…
Chegava a hora de receber o pagamento  pelo trabalho apresentado. Chapéu na mão, quase sempre as Crianças, iam passando pela assistência, em roda, donde pingavam pequenas moedas, duas batatas, uma mancheia de feijões, um naco de pão, uma cebola, um bocado de queijo ou de toucinho… Alguns a fugirem das suas “responsabilidades” e a não contribuírem, trocando a sua condição de explorados pela de exploradores. Nem sempre tinham de seu para dar…
6. Os cantadores ambulantes
Apareciam muito nos mercados e feiras da Vila. Cá ao fundo, junto à loja do senhor Alberto, onde toda a gente “tinha” da passar. Ou no passeio em frente do jardim.
Ao som de uma velha sanfona, da viola, da guitarra, do bandolim, quase sempre desafinados, iam cantando e tentando vender as letras das canções estampadas em papel com fotografias difíceis de reconhecer dos nossos cantantes da época.
Muitas vezes, as músicas eram adaptadas a quadras que recontavam tragédias da nossa gente. “Uma rapariga solteira, que andava na malhadeira…” e que lá caiu. Morte certa, cantada de terra em terra. Por este meio podiam chegar-nos também músicas de sucesso lá na Capital e que, assim, passavam de boca em boca, sem grande preocupação de fidelidade ao original.
7. A Imprensa
Vivia-se quase na ignorância do “mundo longínquo” – que podia ser para lá de Castelo Branco As notícias chegavam pelos jornais - quase só interessavam as das guerras próximas, também a fazerem sofrer o nosso Povo - e, como as cantigas, iam de porta em porta, de boca em boca. Chegavam a Aldeia, diariamente, em exemplares do “Diário de Notícias” e de “O Século”.
  Os dois diários  eram recebidos pelos correspondentes, José Lopes Fixe e Pedro José do Amaral, em troca de eventual serviço a prestar com o envio de notícias locais, o que raramente acontecia. Chegavam pelo correio de Lisboa, de comboio até à Fatela; de camioneta, até Penamacor. Transportados dentro da “mala” de correio até Aldeia pela Ti Rosa Chora, fizesse frio ou calor, chovesse ou com “bom tempo”, a pé ou atrás da sua burra, todos os dias, sem falhar. Uma pessoa a lembrar aqui. Qualquer recado para a Vila ela aviava. Educada, simpática e meiga para todos, com ela não havia risco de o correio não chegar ou de os vales serem roubados. Uma Mulher!
Os jornais diários apareciam um ou dois dias após a sua publicação. Noticia rara que fosse enviada de Aldeia para as redações só dela se saberia, entre nós,  8 ou 10 dias depois. Os destinatários dos jornais informavam-se e informavam. Quase sempre coisas da Guerra. Da Espanha. Da Grande. E das sequelas... O "papel de jornal" impresso com tinta deixava as mãos bem sujas. Serviam depois para a garotada “forrar os livros”, trabalho pouco eficaz, dada a natureza do material empregado. Nesta complicada tarefa do manter limpos os livros, alguns dos gaiatos iam despertando a sua curiosidade pela leitura fora dos livros escolares.
O “Almanaque de S. Miguel”, editado pela Igreja, entrava em muitas das nossas casas. Para além do calendário anual com os dias e nomes dos Santos, ali poderia ser encontrada informação útil para a agricultura, datas de feiras e mercados, notícias de carácter geral, conselhos, adivinhas e pequenas anedotas. Apreciadas eram a segunda e penúltima páginas, numa se fazendo um “prognóstico” do ano que começava e na outra o “juízo da ano” que acabava.
“O Amigo da Verdade”, mensário católico ainda hoje editado na Guarda, nas suas quatro página informava a paróquia da vida da igreja diocesana e universal, com um ou outro artigo de formação e estudo. Num tempo bem “fechado” eram publicações ortodoxas e conservadoras. 
Na passagem para os anos 60, o transistor e a TV a chegarem e a guerra do Ultramar ali tão perto, por iniciativa do Pároco, José Martins Gonçalves Pedro, um Padre para quem os sinos do Vaticano II já tocavam, surge, entre nós um pequeno jornal, "Aldeias Unidas", destinado não a trazer, mas a levar notícias das Aldeias para os nossos migrantes internos e na Europa.  A debandada começara. Até não haver mais quem debandasse.
Os nossos jovens avançavam para outros horizontes, outras escolas e os sonhos começavam. É um período em que a gente moça mantém a página do Concelho de Penamacor no semanário "Notícias da Covilhã", editada com regularidade. O direito a informar e a informar-se começa a dar outro sentido à vida da Aldeia, das aldeias. Os estudantes, com destaque para os seminaristas, e os filhos dos migrantes haviam de abrir estradas para um mundo novo. Não tenho a certeza, hoje, de que fosse melhor.
8. Os tocadores de concertina:
 Fixos eram os bailes do madeiro, do fim da colheita da azeitona, do "dar o nome" ou do recenseamento militar e dos das "sortes", alguns já aqui contados. Também os das festas populares e das religiosas. Muitos ao ar livre. Épocas havia em que os bailes eram quase semanais. Nós tínhamos a Banda; aldeias em roda tinham o seu tocador. E até dois e três. Por aqui, os mais conhecidos e assíduos eram o Zé Manel e o Zé Fonseca, ambos da vizinha freguesia de Aranhas. Também o Silva, o Alziro, o Castilho... de mais longe.
Que tipo de cultura podemos tirar daqui? A dança, o canto, a música. “A cultura é aquilo que fica depois de esquecermos o que aprendemos”, escreveu alguém. E, no ouvido, na alma, no corpo, muita coisa ficou. Também as cantigas da cidade nos chegavam com estes homens. Assisti a tentativas dos nossos conterrâneos para cantarem com acompanhamento da concertina. Tínhamos dançadores exímios, à nossa moda. O meu Pai e a minha Mãe dançavam tão bem!!! Os jovens casais dançavam e as muitas crianças, de volta, a verem e a “ensaiarem”. Os bailes ocorriam na sede da União, em casas particulares, no alcatrão da estrada e nos largos. Também pelos tocadores vinha informação do que se passava nas localidades por onde passavam, nos arredores.
Sem conseguir ser exaustivo, não é o objetivo, fica para os leitores que tiveram fôlego para me acompanhar, a imagem do que se viveu entre nós num tempo em que a Aldeia palpitava de vida, ruído, música, tradições, trabalhos muitos e penosos. E onde muito se sonhava com melhores dias, melhores vidas. E termino sem ter a certeza de que tal nos aconteceu. Da Aldeia fizemos aquilo que ela é, hoje. Um "deserto"... uma grande saudade!
Texto composto a partir das memórias do autor. As duas primeiras fotos são do autor e as quatro restantes foram retiradas da internet.
Em homenagem à nossa maior acordeonista "tirei" do Youtube.

terça-feira, outubro 18, 2011

Uma ponte de Esperança...

Decorria o ano de 2003, quando de S. Tomé chegou a Setúbal um apelo de socorro em favor das Crianças mais pobres, órfãs, maltratadas e abandonadas. A Cáritas diocesana de Setúbal agarrou a ideia e promoveu junto das pessoas mais próximas a ideia de era possível fazer alguma coisa boa e imediata. Passar das intenções à prática foi um passo e logo surgiram as primeiras dezenas  de “padrinhos” e “madrinhas” para apoiar quem precisava, ainda que lá bem longe.
  Em ligação com os serviços da Igreja Católica locais surgem “centros” de apoio na cidade de S. Tomé, nos Angolares, em Ribeira Afonso e nas Neves. Desde então lá foram e vão acolher-se os mais pobres de entre os pobres, em procura de ajuda traduzida em alimentação, vestuário, acolhimento e educação.
A fim de dão coesão ao grupo, com pessoas de Norte a sul de Portugal, a Cáritas convoca os membros deste “movimento” e reúne-os em festa de convívio, também com o fim de obter mais financiamentos a aplicar no bem estar das Crianças a quem devemos, em Justiça, uma melhor qualidade das suas vidas ainda tão curtas.
O local escolhido em 2011 não foi difícil de encontrar: a Casa Ermelinda Freitas colocou as suas magníficas instalações à disposição da Cáritas e para lá nos dirigimos. A festa e o encontro haviam de acontecer.
No passado sábado, a manhã quente, como todas as deste mês de Outubro, levou os participantes até ao simpático lugar de Fernando Pó… A Dr.ª Leonor – a Casa tem o nome de sua Mãe – iniciou a visita guiada pelas adegas, caves e lagares, para serem vistas e explicadas coisas que não imaginamos quando olhamos para as garrafas, no supermercado. Passeio cheio de interesse, bem como as explicações da anfitriã.
O encontro passou para o salão de festas, de cujo terraço se avista uma paisagem de sonho, vinhas e mais vinhas bem tratadas, folhas já nas tonalidades de um Outono que não quer chegar.
O almoço foi confecionado com orientação nas receitas do Chefe João Silva. Sinceramente, não fiquei “convencido”. A refeição era farta, mas faltavam ali os produtos, os sabores e os cheiros originais de S. Tomé e Príncipe. A mão e a presença do Mestre. E aconteceu toda a diferença.
Depois os testemunhos e as fotografias, dezenas e dezenas de Crianças, olhos cheios de esperança, que nos compete fazer crescer e alimentar. No corpo e na alma. Também o apelo para que se dinamize  o aparecimento de novos “padrinhos”,  já que as “desistências” somadas ao aparecimento de mais Crianças em risco tornam muito urgente esta missão.
Aconteceu, para encanto dos presentes, a passagem de modelos com trajes de S. Tomé e Príncipe. Um encanto que me deu a ver, com olhos bem abertos, o que não me dera conta nos cinco anos em que vivi nas Ilhas do meio do Mundo. Bem hajam as mulheres de S. Tomé, ali representadas pela associação MENON!
Alguns de nós desejam visitar aquela terra bendita, por mais uma vez. Outros sentem o forte apelo no que veem e no que ouvem. Assim, a discussão para organização de um passeio visita às Ilhas encantadas do Equador surgiu, naturalmente. Os preços da A. de Viagens até parecem razoáveis, mas também por aqui se vivem dias bem difíceis… Oxalá nasça luz!
O sol escondia-se lá bem atrás do castelo de Palmela e era tempo de cada um regressar a sua casa. Às palavras solidariedade e fraternidade há que continuar a dar sentido. Humanista. Cristão.
Saber mais:

quarta-feira, outubro 12, 2011

Instrução, Cultura e Informação na Aldeia 1

Numa época em que as trevas da noite tomavam conta da Aldeia logo a seguir ao pôr de sol, não era fácil descobrir preencher "espaços", depois do trabalho duro na agricultura e na pecuária, donde saía o sustento de cada dia de quase toda a nossa Gente. Regresso a casa,  comer a ceia frugal e… depois,  à volta do lume, ficar de conversa sobre "a vida", ou a contar histórias de bruxas, lobisomens e almas do outro mundo, narrar um conto tradicional ou tirado dos livros da escola, a terminar num conceito educativo, enquanto se preparava o almoço da manhã seguinte, se dava um jeito nas roupas usadas…  Havia lugar ainda para momentos de namoro arranjado ou sentido, ali, à vista de todos. Também encostados na ombreira da porta ou da janela para a rua,  “de gargarejo”… Enfim, a cama! Para a maioria era um "deitar cedo e cedo erguer..."  Deste modo o crescimento na instrução, na cultura, na moral e no civismo era assente nos valores cristãos que impregnavam, por tradição ou opção, o ambiente bem fechado em que vivia a população, por toda uma vida.
Não havia rádios, muito menos televisão, só poucos livros escolares que "deviam" passar de irmão para irmão e que podiam ali ser chamados "a desoras" para a "cópia" do dia que a brincadeira ou o trabalho da tarde descuidara. Assim mesmo, à luz de um candeeiro, quando não da fogueira, sem papel nem caneta ou lápis, na "pedra" ou "lousa" de ardósia, "ponteiro" para escrever. Tempos em que -  escutado da minha madrinha, 95 anos radiosos e inteligentes - “era uma Mocidade muito bonita em que nenhum faltava ao respeito ao outro”.
 Vou aqui fazer uma resenha tão precisa quanto possível da maneira de viver da Gente de Aldeia, nas décadas 20-50, para além da árdua tarefa de angariar “o pão nosso de cada dia”, descrita em capítulos anteriores.
 Vão elencados os principais agentes da formação e da informação ativos nesta nossa Comunidade e o papel que coube a cada um deles: a Igreja, a Escola, a Banda, a Casa de Trabalho, os Comediantes, os Cantadores ambulantes, a Imprensa e os Tocadores de concertina.
 1.  A Igreja
Competia à Igreja a formação moral e religiosa das pessoas, o ministrar dos Sacramentos e a evangelização do Povo, nem sempre no sentido da Libertação anunciada por Jesus Cristo, antes na conformação com a pobreza e com o sofrimento, na aceitação da humildade e da obediência. No entanto, a Igreja punha o Povo a cantar, trazia notícias do seu mundo restrito, fazia as celebrações, “promovia” a festa e obrigava ao descanso dominical e ao dos dias santificados.
Nestas décadas, teve influência decisiva, em várias gerações, o Padre José Maria Lopes Nogueira que, já no final da monarquia havia por aqui andado e criara a banda filarmónica.
 O mais importante serviço da Igreja era prestado à comunidade juvenil, a Catequese, frequentada por dezenas e dezenas de Crianças, onde se procurava aprofundar, completar a formação cristã de cada um, iniciada em quase todas as famílias. Dirigiu a Catequese a prof. D. Gervásia Andrade Costa, de quem se voltará a falar. Tendo decidido habitar em Aldeia e permanecer solteira, dedicou, generosamente, a sua vida a instruir, a educar e a amar a nossa mocidade. Injustamente, uma personagem esquecida no passado da nossa terra e de quem aqui quero deixar memória. Preparava as catequistas de entre as jovens da sua confiança, suas ex-alunas e frequentadoras da Casa de Trabalho. Não será de mais aqui evidenciar a sua notável influência na formação da gente nova do seu tempo.
A Catequese preparava a primeira Comunhão, pelos 7 anos; a Comunhão solene lá pelos 12 e, muito raramente, o Crisma dos adolescentes e adultos. A comunhão solene era um dos momentos mais festivos na vida da comunidade paroquial. Chegava no princípio do Outono, depois de se terem aproveitado as férias das Crianças e dos seminaristas para para um trabalho mais profundo e fecundo, embora na Catequese fossem ministradas mais fórmulas para a memória do que o estudo do Evangelho e da mensagem bíblica.  Com grande parte do cerimonial da Missa em Latim, não era fácil despertar a atenção e, sobretudo, o coração de muitos dos praticantes. O concílio Vaticano II ainda não era sequer sonhado...
É neste período que seis sacerdotes são ordenados e são "cantadas" seis "missas novas". Os nomes, para que conste: Padres Agostinho, Alberto, Artur, Jaime, José Joaquim e Gama.  
 2.  A Escola
 Há notícia do funcionamento da escola e de existência de professores, desde o último quartel do séc. XIX. No que se refere ao período em apreço, são mais evidentes os papéis dos professores D. Gervásia, Justino, Moreira, Teodósio e D. Celeste. Muitos foram os alunos que passaram pelas suas aulas. Na década de 20  lecciona-se aqui o ensino até à 6ª. Classe, situação que se degradou com o advento do Estado Novo.
A prof. D. Gervásia passou a maior parte da sua vida docente nesta Aldeia e aqui chegou ao fim da sua caminhada terrena. Um marco notável entre nós, muito querida, mesmo amada de todos, foi justamente homenageada no fim da sua carreira docente, festa que coincidiu com a inauguração da escola nova do Plano dos Centenários, no dobrar do século XX.
Foi com mágoa que toda a população sentiu a oposição dos familiares a que ficasse sepultada aqui. Em vida sentira-se uma de nós! Aldeia está a dever-lhe, ainda hoje, uma outra homenagem que perpetue a sua memória e a faça recordar pelos que depois dela vieram.
3.  A União
Fundada a nossa Banda ainda antes da implantação da República, com o mérito da população bem dinamizada pelo então pároco, padre José Maria Lopes Nogueira, teve de se assumir com “a prata da casa” e ir vivendo, com altos e baixos, quando aquele sacerdote fugiu da perseguição republicana às suas ideias monárquicas.
Ao longo de mais de um século, centenas e centenas de jovens aqui fizeram a sua aprendizagem musical, enveredando muitos pela profissionalização nas bandas das forças armadas e de segurança. Ao redor da Banda, o Povo ia construindo a sua União. Mesmo os não executantes iam apurando o ouvido e a voz, quer cantando em conjunto com a Banda, quer em grupo ou individualmente. A Banda desenvolveu o espírito de equipa, disciplina, solidariedade  e cooperação, bem patentes no nosso Povo na construção da sua sede, na reconstrução da igreja paroquial e na do centro social. A população revia-se na Banda e por ela se sentia educada e feliz. De entre os Mestres que conheci, para além do padre José Maria, tenho de salientar o Ti ´Stonho, a “tapar buracos” quando outros falhavam; o Ti Matos, excelente músico da minha infância, que tanto admirei, anos e anos, nos seus gestos exuberantes e no levantar das sobrancelhas farfalhudas, quando as coisas não lhe corriam bem nos ensaios ou nas exibições públicas; o 1º. Sargento Músico Jaime Rei, um apaixonado pela Música e por Aldeia, membro de uma família melómana e de grande dedicação à Banda. 
 Na sede da Banda chegou a realizar-se teatro de revista com a gente moça de Aldeia que, às vezes, sem saber ler ou mal entendendo o que lia, subia ao palco lá construído para alegria da população. Fez história um espetáculo levado à cena, em que uma das canções tinha a letra apanhando quase todos os "apelidos" ou alcunhas de Aldeia e que começava assim: “Rin-tin-tin cá na terra sou o Pechim, mas se me chamam Piorreco, respondo que sou o Feco…!” Obra do Mestre Jaime Rei,
Além dos ensaios da Banda, na sua sede realizaram-se centenas de bailes, alguns espetáculos de “comédias” – falaremos adiante – fizeram-se projeções cinematográficas. Vi o primeiro “filme” da minha vida, o casamento da rainha Isabel II… “Espetáculo” foi também ver as pessoas a gritar com medo que as rodas do coche saltassem do coche...
Assistir aos ensaios da Banda era uma das atividades preferidas dos nossos homens e rapazes e forma de os tirar da taberna; adormecer ao som dos instrumentos a tocar nos  ensaios era uma boa maneira dispensar os calmantes e dar bons sonhos à restante população.
Para a História: Os Estatutos da União foram aprovados por alvará do Governo Civil de 15.01.1924, tendo por sócios fundadores os senhores Jaime d'Aguilar Simões, Luís Leitão Mendes, José Joaquim Moreira e Tenentes António Manuel Ribeiro e  Domingos Antunes. 
Constituíram  a primeira Direcção formal os senhores Jaime d'Aguilar Simões (Presidente), José Joaquim Moreira (Tesoureiro) e Luís Leitão Mendes (Secretário). (Alguns dados históricos recolhidos em "O Concelho de Penamacor na História, na Tradição e na Lenda" de J. Manuel Landeiro, e em  "Banda filarmónica de Aldeia de João Pires" de M. Lopes Marcelo
Fim da 1ª. parte)

sexta-feira, junho 17, 2011

O Sobreiral

Uma das boas recordações da minha Infância.
Quando nasci, já estava lá. Um vasto terreno a Norte da povoação, subindo pela encosta suave, até à Penha de Águia. Na sua maior parte em posse da “Casa Grande”, nunca soube por que razão o seu acesso  foi aqui permitido às gentes de Aldeia, quase sem restrições. Sobretudo aos mais novos que os pais e avós tinham que trabalhar. Eram dezenas e dezenas de sobreiras, talvez centenas, na força da idade, abrigando no seu seio, quando o tempo chegava, muitos e muitos ninhos que, depois, tornavam o Sobreiral num local de eleição. Ao fundo do declive, extremada em cada topo por meia dúzia de enormes eucaliptos fora de contexto, havia uma zona aplanada e arenosa, terra bem batida, por todos conhecida como “o ténis”, memória de tempos passados, disseram-me, em que os filhos da “Casa Grande” ali jogavam aquele desporto de elite, na sua juventude. Assim, na minha meninice era quase um privilégio ali poder jogar à bola, nem que fosse de trapos enrolados na meia que algum de nós surripiara das poucas que a mãe lhe destinara.
O Sobreiral tinha muitas das condições que podiam fazer-nos felizes. Ali podíamos jogar às escondidas, aos polícias e ladrões, à cabra-cega, ao descanso, ao eixo, à barra, às nações…
A Primavera mostrava lá grande esplendor: sobreiras viçosas, aqui e ali um ou outro pinheiro, os enormes eucaliptos, os “saragoaços”, os rosmaninhos, as giestas e as estevas floridas, No Verão as sombras eram acolhedoras e benfazejas.
Depois, na adolescência, havia outros  encantos. Subia-se, subia-se e era motivo de enorme satisfação alcançar, vencer os penhascos da Penha de Águia e dali avistar uma extensa paisagem: Monsanto, em frente, a vastidão do concelho da Idanha, Castelo Branco a alvejar, lá bem longe, com o seu altaneiro castelo. Tudo isto estava ao alcance dos nossos bons olhos de então.
Estar na Penha da Águia era uma preferência dos nossos adolescentes. Para além do "desafio", ler, estudar, conversar, ouvir música no rádio que o Rui levava de casa, para deleite dos restantes: o meu Irmão, o Jorge, o Moreira, Antónios, Maneis, Josés. Moças é que não. Havia de chegar o tempo e então cada iria “esquecer-se” dos encantos daquelas horas ali passada e saboreadas. De vez em quando, passava um dos muitos rebanhos para tornar ainda mais idílico um ambiente já de si cheio de bucolismo. Pode afirmar-se que por ali a Natureza e Homem se harmonizavam. Mesmo no Inverno as nossas idosas, sobretudo as viúvas – e havia muitas – podiam catar o graveto ou gravato para as suas pobres lareira e com isso aliviarem o muito frio das noites de tempestade ou de geada, com o vento a uivar e a penetrar pelas coberturas das modestas casa de “telha vã”. Pelo Natal, ali que se apanhava um pouco de musgo para os raros presépios que se fizessem em família. Ou lá na escola. Que o da igreja fiava mais fino e só o musgo do "pinhal das colmeias", bem atrás do Sobreiral, mereceria ser o escolhido.
Os anos passaram e eu quase esqueci o Sobreiral. Fui sabendo pela minha irmã, muito mais nova, que também na sua infância e adolescência, ela e amigos haviam beneficiado do encanto daquele lugar bem agradável.
Seguiu-se o abandono das nossas Aldeias, o desapego por tudo aquilo em que crescemos, acreditámos e nos fizemos gente. Também ao Sobreiral havia de calhar destino semelhante.
Meses atrás, quis visitar o Sobreiral, subir à Penha de Águia. Um dos meus netos e um seu amigo, dez anos de idade, dispuseram-se a fazer-me companhia para eu rever um local onde havia sido feliz.
Como ouvira de minha Mãe, 20 anos atrás, “ó filho, a Aldeia que tu conheceste já não existe!” os meus olhos não se encheram daquele verde sempre presente, no frio e no calor, da folhagem do arvoredo. Mão criminosa ou descuidada ateara a chama em que o Sobreiral se consumira. Aqui e além um sobreiro que escapara; de resto apenas esqueletos em pé. Do que fora vida e encanto nada restava. As giestas e os codeços enormes haviam tomado conta daquele lugar de sonhos. Mesmo assim, incitando-nos uns aos outros, tomámos a Penha de Águia por nosso limite. Não foi fácil a subida. Aproveitámos o trilho de tractores e uma ou outra vereda a fazer lembrar tempos distantes. Depois foi a “corta mato”, desvio para aqui, desvio por acolá, subindo, subindo lenta e penosamente. Suados e cansados, ali estávamos na base das grandes pedras de granito. A Penha de Águia, tão perto e tão longe, As giestas cresceram de tal maneira que formavam uma cortina quase impenetrável que só a muito custo e com ferramenta adequada poderia dar uma passagem de acesso lá para cima. Mais do que em 1989, a frase de minha Mãe me soara aos ouvidos:
- Ó filho, a Aldeia que tu conheceste já não existe.
Regressei, cabisbaixo, com as Crianças nos ouvidos:
- Avô, para o ano vamos tentar outra vez?
O Passado e o Futuro, a Descrença e a Fé de mãos dadas.
A Giane. Ouvi-a lá. Com a paixão que só se tem na idade da inocência.