sábado, fevereiro 12, 2011

Medos da Aldeia 4

Lacraus

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Raparigas cantai todas, rapazes cantai com elas.
Que não haja um dizer, nem nos rapazes nem nelas.
Óloai larilólou!!!! Óloai larilólela!!!
O mês de Agosto avançava e o calor torrava campos e pessoas. Para serem descamisadas, carradas de canas de milho haviam sido transportadas e colocadas à sombra das oliveiras e sobreiras, numa espécie de círculo cujo centro era o tronco das próprias árvores.
Depois, os ranchos que haviam sachado e mondado, aterrado e cortado os "seus" milhos ali estavam, num trabalho bem mais feliz e alegre, a separar as loiras maçarocas, que haviam de dar as alegrias da farinha para as broas e do “carolo” das papas, a matar a fome lá nas noites de invernia.
A maioria das personagens empenhadas nesta alegre tarefa campesina eram mulheres e adolescentes, por vezes crianças em jeito de que “de pequenino se torce o pepino, e a eira, ali ao lado, ia ficando composta, oferecendo o esplendoroso espectáculo das douradas maçarocas a brilhar sob o quente e refulgente Sol de Verão. Para completar a secagem que havia de conduzir à tão desejada malha, sob o bater dos manguais empunhados por homens de “antes partir que torcer”.
A descamisa. Depois da vindima, era, por certo, o mais alegre trabalho campestre lá pelos anos 50. Feito à sombra, em alegre cavaqueira, histórias de anos passados eram ali trazidas à conversa, e toda a novidade de um meio sem notícias passava por um trabalho que ocupava a maior parte da Aldeia, a Norte e a Sul, a Nascente e a Poente. No meio de alguma brejeirice, um piropo para aqui uma "ferroada ali e o   trabalho decorria repetitivo e a gosto.
Nesse Verão, motivo de chacota era aquela de "O Presunto", um monsantino, em "história de amores e ciúmes" ainda hoje mal contada, quando chamado a passar dos "considerandos" aos "finalmente" haver pegado num cacete e haver posto o "rancho d'Aldeia" em debandada.
Num "povo de poetas e músicos" a brincadeira pegou logo e era cantada por aqui e por ali, no meio de gargalhadas e dichotes bem atrevidos:
"A tia Fidalga Velha, óai, a tia Fidalga Velha,
ai..,fugiu toda atrapalhada....
Para detrás de um barroco, óai, para detrás de um barroco,
Ai, só p´ra dizer que não viu nada."

"Não me digas que sim, não me digas que não,
O rancho do carvalhal já não vale um tostão.
Já não vale um tostão, já não vale um pataco,
O "Presunto", sozinho,  fez fugir vinte e quatro..."
E a cantiga ia crescendo, crescendo, conforme a arte e o engenho malicioso de cada um.
Com espetos de pau de esteva ou de marmeleiro, ou com facas e navalhas a preceito, as camisas do milho, caneira a caneira, eram rasgadas e as maçarocas libertadas iam enchendo cesto, baldes e caldeiros para serem despejados nas lajes da eira, quase sempre perto. Quando a colheita já assumia algum significado, era ali que se juntava o que fora semeado, tratado e recolhido em campos dispersos e colocado, ali, à beira daquele espaço formado de duras lajes de granito, a eira.
Este trabalho quase leve e de alegre boa disposição, à sombra,  culminava na recolha do fruto de longas semanas de trabalho, que começaram pela sementeira do milho lá quando o cuco e as andorinhas apareciam a anunciar a Primavera a dizer que era tempo de arar.
Nesta alegre tarefa de descamisar o milho, havia sempre um certo “jogar à defesa”, não tanto dos mais afoitos, mas quase sempre dos mais medricas. Naquele tempo, ainda havia lacraus. Muitos mesmo. Era fácil encontrá-los, havendo quase um debaixo de cada pedra que se levantasse. E a sua picada era conhecida de todos, uns de experiência própria... outros de ouvirem e verem. Nada de brincar!!!
Ora, estes simpáticos bichinhos, cuja picada tão dolorosa bem senti, tinham por hábito esconder-se debaixo dos montes de milho cortado. Assim, era com alguma precaução e olhos bem abertos que se iam puxando os caules empilhados para serem trabalhados sem dissabores de maior.
Mesmo assim, não se passava uma descamisa sem que houvesse um mau encontro com aquele que era capaz de, em golpe rápido, vir agarrado e ferrado num dedo, mesmo na mão. O “artista” acabava mal e a vítima ia padecer um bocado.
Estava quase na hora do jantar, sol a pique, ondas de calor a cortar a respiração. Caule a caule, cada um ia tomando conta no seu trabalho: maçarocas no cesto, canas bem alinhadas para serem bem secas, atadas, para alimento dos animais, nas longas e frias noites do Inverno que chegava sempre, a seu tempo. A conversa estava agora mais calma, os cantares mais esparsos e menos vivos, a fome e a sede  a apertarem e o calor sempre a aquecer.
- Olha, o sacana, apanhou-me mesmo em cheio!!! E não larga… E logo havia de ser na “berra” do calor.
O alarido generaliza-se, opiniões de “faz assim” “faz assado” eram de sobra. Uma sacudidela mais forte faz o lacrau largar o dedo que ferrara, mas não teve êxito na tentativa de se voltar a esconder debaixo das canas. Ou do que quer que fosse. A partir do momento em que atacara o homem… o seu destino só podia ser um… morrer.
Todos sabiam que a picada do lacrau não era para brincadeiras, num tempo em que só a medicina caseira havia inventado algum antídoto.
Homem de "mais vale partir que torcer", o Fernando, a custo retinha as lágrimas, enquanto ia praguejando e soltando alguns ais bem doridos. Com a navalha bem afiada, "a frio", alargara-se o orifício da picada, espremera-se o sangue “envenenado”, que gotejava lentamente. Um mais afoito mete a ferida na boca, chupa e cospe repetidas vezes não vá o diabo tecê-las.
Devagar, o pessoal vai-se preparando para a refeição do meio dia.
Alguém se lembra de que na modesta casa campestre, ali perto da eira, haveria “Gaiacol” o remédio com que se aliviavam as dores dos dentes tão frequentes numa época em que apenas se ia ao “dentista” para arrancar, a frio, dentes cujas dores já se tornavam insuportáveis.
Realmente, o efeito analgésico do “Gaiocol” fez-se sentir.
O Fernando não jantou, nesse dia. Como se tivesse maleita, enrolou-se numa manta de farrapos e ali, à sombra da sobreira, foi sofrendo, gemendo e dormitando.
Quando o sol já se escorria para trás da serra, num repente, levantou-se, em meio de risadas e palmas e exclama:
- Maria, larga o milho e vamos regar a horta , que este calor deixou tudo murcho.
Eram assim, os nossos camponeses, sem direito a baixas nem a greves. Só o trabalho os esperava, nem sempre certo, quase sempre mal pago.
Notas:
1. Fotos retiradas da Internet;
2. Texto fora de época, mas há meses a aguardar publicação.

4 comentários:

Rita Loureiro disse...

Ehhhhhh... tu nem me fales disso que um gajo desses ferrou-me num pé, tinha eu uns 12 ou 13 anos... e foi lá na aldeia... bolas!! Em poucos minutos a dor galgou pela perna acima até à anca... e mesmo assim até tive alguma sorte porque como lhe pus o pé em cima ele não deve ter tido tempo de esvaziar o veneno todo, o grande estúpido... bem pensando bem coitadito... eu é que o pisei... heheheheh

prohensa disse...

Professor, já andava com saudades de uma destas histórias daqueles tempos...
E logo uma de alacrários que eram, de facto, dos visitantes mais frequentes e mais temidos nessas tarefas do campo.
Como deve ser monótona e enfadonha a vida destes bicharocos hoje em dia... a grande maioria deles deve nascer e morrer sem nunca ter visto um ser humano lá por aqueles campos...
Um abraço

Anónimo disse...

Meu caro António

Quando leio estas tuas histórias de Aldeia fico com a sensação de que as estou vivendo pessoalmente,talvez por termos vivido no mesmo tempo,passado pelos mesmos locais e sobretudo partilhado as mesmas coisas.
Também eu "saboreei",bem pequeno, a picada do "alacrário",numa descamisa,lá para as bandas do Lajoado.Agora,nessa altura, ninguém se lembrou desse tal "Gaiacol"...milagroso
Gostei da história do "Ti Presunto",guarda da Casa Marquês,que conheci,mas desconhecia a proeza do cassete.
Reviver contigo estas histórias, que tu tão bem sabes contar, é um avivar de saudades dos tempos de menino que passámos juntos em Aldeia.
Um abração muito amigo.
Jorge

Jorge Passos disse...

PS. Caro António

Por dificuldades,que ignoro,não consegui a minha identificação no comentário que te enviei.As minhas desculpas.Jorge Passos