quarta-feira, abril 20, 2011

A Semana Santa... nos anos 50...


O cuco dava sinais de que a Primavera ia avançando no seu doce caminhar, em direcção às agruras do Estio.  O mês de Abril enchia de vida a terra, as águas e os ares. No beirado da Casa Grande, dezenas e dezenas de ninhos iam sendo construídos e habitados pelo amoroso laborar das andorinhas que eram muito exigentes no locais preferidos para terem os seus filhos. Sentir-se-iam mais seguras junto dos ricos?
Nas águas dos ribeiros e da Ribeira as rãs coaxavam noite e dia e nos silvados, freixos e salgueiros das margens os rouxinóis e melros cantavam ao desafio e tratavam de renovar gerações.
Os campos. Quase não havia ponta de terra que não estivesse ao serviço da Comunidade. As searas centeeiras, por montes e vales, ondeavam ao sabor da brisa como enorme oceano verde, parecendo fugir para os campos do vizinho. Lá bem no interior, as cotovias haviam de ter os seus ninhos e criar os filhotes, com as perdizes ali por perto, sempre temerosas que alguma cobra, lagarto ou raposa lhes fosse comer os ovos ou os perdigotos. O cantar da passarada encantava os ouvidos e adoçava a vida dura e pesada dos camponeses. Nos milheirais, semeados havia semanas, os pequenos caules iam dando aos campos aquele tom verde brilhante que enchia de esperanças renovadas o coração dos camponeses:
- Este ano é que vai ser. A Primavera não podia vir melhor!!!
Nas hortas, alfaces, alhos, ervilhas e favas davam já frutos e podiam ser servidas nas ceias dos nossos Aldeões, enquanto os batatais, os feijoeiros, as aboboreiras e todas os plantações da época iam fazendo pela vida. Aqui e ali já a merecer uma rega com a água tirada dos poços e da Ribeira, à força de braços musculados e rijos, ou nos alcatruzes das poucas noras puxadas por mansas burras, num rodar contínuo, sem conseguirem sair do "eterno" circuito, um esforço que enchia a terra de vida nova.
Por todo o lado, nos campos deixados de pousio bem necessário em terras tão fracas, os muitos rebanhos de ovelhas e cabras iam pastando na fartura efémera de uma Primavera fértil, para logo à noite, serem ordenhadas e darem o leite e o queijo para consolo de muitos e algum do dinheiro que se ia conseguindo nas vendas à Comunidade e para as praças das Cidades e Vilas vizinhas. Dali a pouco mais de um mês teriam lugar as tosquias de ovelhas e carneiros, dando a venda das lãs alguma folga nas economias bem administradas de cada criador.
Calhara "alta" a Páscoa, a Festa de Flores, como se designava na nossa Aldeia, a passar de meados do mês de Abril. Desde Domingo de Passos que as imagens da igreja haviam sido tapadas com panos pretos e roxos, acentuando ainda mais o aspecto de tristeza que se havia de sentir pelos sofrimentos de Cristo, a culminar na Sexta Feira da Paixão. Diarimente, o Pároco, raramente, quase sempre alguma alma mais piedosa ia recitando com alguns devotos, pelo anoitecer, as 14 estações da Via Sacra, ao redor do interior do templo, com meditação e oração junto de cada uma das cruzes - hoje há 15 quadros para uma Via Sacra a terminar na Ressurreição - com que se lembrava o sofrimento do Salvador no seu caminho de martírio para o Calvário. Um dos poucos meios de Evangelização em Português corrente.
Passara o Domingo de Ramos com a tradição habitual, muitas Crianças empunhando lindos ramos floridos, e aí estava a Semana Santa. Os trabalhos no campo eram reduzidos a "serviços mínimos". Alfaiates e costureiras davam os últimos retoques em fatos, saias, vestidos e blusas que haviam de dar brilho no cantar dos aleluias. Os sapateiros aprontavam umas botas ou reparavam uns sapatos que, por vezes, tinham dificuldade em adaptar-se aos pés de quem os encomendar. Os latoeiros aproveitavam para acabar as latas para doces, há muito encomendadas, mas que teriam mesmo de entrar num dos dois fornos com os bolos de leite, biscoitos, esquecidos, borrachões e até o "pão leve" havia de aparecer nalgumas mesas, aquando da visita pascal, de familiares e amigos. As duas mercearias tinham então um movimento desusado: açúcar, arroz, massa, canela e até alguma flanela, chita ou riscado para uma farpela de última hora. Os ferreiros aproveitavam a pausa do campo para consertar as ferramentas e instrumentos agrícolas e tlan-tlan dos martelos a bater no ferro em brasa ouvia-se por toda a Povoação. A casa nova que o João encomendara, com tanto sacrifício, para estrear por estes dias, não ia ficar pronta ,apesar do esforço dos pedreiros, carpinteiros e pintores da terra. Quase... quase, mas não ia lá receber as boas festas. Até as tabernas registavam um movimento desusado, nem sempre de boas consequências.
Não raro passava uma rapariguinha, já sol posto e cabras recolhidas, a apregoar "Vamos ó lete! Vamos ó lete" na esperança de que alguém lho havia de comprar.
As habitações eram reviradas para serem lavadas, caiadas, pintadas. As escadas e balcões de granito levavam tratamento especial, pois o Inverno deixara "mossa".
Toda esta agitação era seguida pela garotada em férias com o jogo, entre outros, do "engraixar, engraixar" que havia de "arrebentar" na manhã da Ressurreição e o mais "rápido" a mandar "rezar" havia de receber as amêndoas ganhas com tanto empenho, ao longo de toda a Quaresma.
 Depois, em Quinta Feira Santa, a celebração da Missa da Ceia do Senhor, durante a qual sinos e campainhas tocavam para se calarem até às 24 de Sábado Santo, dando lugar ao triste toque das matracas, seguida da Ladainha da Mulheres, em que as ruas se apinhavam de novos e velhos, homens e mulheres. Respeitava-se, em quase silêncio,  a Sexta Feira, silêncio quebrado pelo cântico de "Os Martírios" e em que, ao bater das três da tarde, todos os trabalhos paravam, as cabeças dos homems se descobriam e, por um momento, o pensamento se juntava à lembrança da Morte de Jesus.
A manhã de Sábado Santo era das mais afadigadas, trabalhos para terminar, bolos para fazer, pão para cozer, arranjar o galo que ainda vira a descendência nascer ou a galinha que, por capricho desconhecido, não punha ovos, ou punha menos do que a dona julgava merecer - qualquer desculpa servia, que festa é festa... - a corrida aos "talhos" locais ou da vizinha Aldeia do Bispo, o jantar (meio-dia) e a merenda para a Senhora do Incenso haviam de valer por muitas poupanças e muitos trabalhos. Sim, que um dia não são dias.
Depois, às 24 horas de Sábado de Aleluia, as alvíssaras com um Povo a cantar em uníssono com a sua Banda, percorrendo as ruas da Aldeia, anunciando a boa nova de Cristo Ressuscitado.
Na manhã de Domingo, olhos ensonados, havia a visita aos padrinhos para "bicas" e amêndoas doces.
Antes da Missa do dia, tinha lugar a Procissão da Ressurreição com Jesus Sacramentado, ao som de aleluias festivos. Pelo meio-dia, o jantar, (uma sopa de grão com massa ou uma canja, um naco de carne, um arroz aprimorado e uma salada maruja ou de alface e agrião, um púcaro de vinho) antecedia as boas festas pascais, com a campainha a tocar pelas ruas repletas de gente alegre e festivaleira que se deslocava de casa em casa, para estar com amigos e familiares, e em cada lar as felicitações do Pároco, em auspiciosas exclamações de
- Boas Festas, Cristo ressuscitou! Aleluia! Aleluia!
De tarde, havia que preparar a romaria da Senhora do Incenso. Também nesse tempo as donas de casa não tinham mãos a medir. Nem hora para descansar.
Texto da responsabilidade do autor, inspirado nas suas vivências e recordações juvenis. Foto tirada da Internet e "Os Martírios" são cantados por Amália Rodrigues.

1 comentário:

Jorge Passos disse...

Amigo Tó

Estive em Aldeia a passar uns dias nesta quadra, donde regressei,ontem, dia de Páscoa.
Como podes calcular lá estive na Ladainha das Mulheres,5º Feira Santa e nas Alvíssaras às 24 horas de sábado.
Encontrei muitos conterrâneos nossos,muita juventude,a maior parte desconhecida e alguns forasteiros,admirados com tamanha manifestação popular.
Já não ouvi a matraca...a partir do meio dia de 5ª Feira Santa,não ouvi os "reza"(pensamentos passou a Quaresma,Aleluia,aleluia)...nem vi crianças com a bica de trigo dada pelos padrinhos.
A tua descrição dos anos 50,bela e com pormenor,faz-nos compreender como hoje tudo é bem diferente.
Até os preparativos para a ida à Senhora do Incenso...onde tantas vezes nos encontrámos ...mudaram.
Ao menos paira ainda no ar um sentimento de religiosidade que faz das nossas gentes um povo ordeiro e sentimental.
Um abração muito amigo.