sexta-feira, junho 17, 2011

O Sobreiral

Uma das boas recordações da minha Infância.
Quando nasci, já estava lá. Um vasto terreno a Norte da povoação, subindo pela encosta suave, até à Penha de Águia. Na sua maior parte em posse da “Casa Grande”, nunca soube por que razão o seu acesso  foi aqui permitido às gentes de Aldeia, quase sem restrições. Sobretudo aos mais novos que os pais e avós tinham que trabalhar. Eram dezenas e dezenas de sobreiras, talvez centenas, na força da idade, abrigando no seu seio, quando o tempo chegava, muitos e muitos ninhos que, depois, tornavam o Sobreiral num local de eleição. Ao fundo do declive, extremada em cada topo por meia dúzia de enormes eucaliptos fora de contexto, havia uma zona aplanada e arenosa, terra bem batida, por todos conhecida como “o ténis”, memória de tempos passados, disseram-me, em que os filhos da “Casa Grande” ali jogavam aquele desporto de elite, na sua juventude. Assim, na minha meninice era quase um privilégio ali poder jogar à bola, nem que fosse de trapos enrolados na meia que algum de nós surripiara das poucas que a mãe lhe destinara.
O Sobreiral tinha muitas das condições que podiam fazer-nos felizes. Ali podíamos jogar às escondidas, aos polícias e ladrões, à cabra-cega, ao descanso, ao eixo, à barra, às nações…
A Primavera mostrava lá grande esplendor: sobreiras viçosas, aqui e ali um ou outro pinheiro, os enormes eucaliptos, os “saragoaços”, os rosmaninhos, as giestas e as estevas floridas, No Verão as sombras eram acolhedoras e benfazejas.
Depois, na adolescência, havia outros  encantos. Subia-se, subia-se e era motivo de enorme satisfação alcançar, vencer os penhascos da Penha de Águia e dali avistar uma extensa paisagem: Monsanto, em frente, a vastidão do concelho da Idanha, Castelo Branco a alvejar, lá bem longe, com o seu altaneiro castelo. Tudo isto estava ao alcance dos nossos bons olhos de então.
Estar na Penha da Águia era uma preferência dos nossos adolescentes. Para além do "desafio", ler, estudar, conversar, ouvir música no rádio que o Rui levava de casa, para deleite dos restantes: o meu Irmão, o Jorge, o Moreira, Antónios, Maneis, Josés. Moças é que não. Havia de chegar o tempo e então cada iria “esquecer-se” dos encantos daquelas horas ali passada e saboreadas. De vez em quando, passava um dos muitos rebanhos para tornar ainda mais idílico um ambiente já de si cheio de bucolismo. Pode afirmar-se que por ali a Natureza e Homem se harmonizavam. Mesmo no Inverno as nossas idosas, sobretudo as viúvas – e havia muitas – podiam catar o graveto ou gravato para as suas pobres lareira e com isso aliviarem o muito frio das noites de tempestade ou de geada, com o vento a uivar e a penetrar pelas coberturas das modestas casa de “telha vã”. Pelo Natal, ali que se apanhava um pouco de musgo para os raros presépios que se fizessem em família. Ou lá na escola. Que o da igreja fiava mais fino e só o musgo do "pinhal das colmeias", bem atrás do Sobreiral, mereceria ser o escolhido.
Os anos passaram e eu quase esqueci o Sobreiral. Fui sabendo pela minha irmã, muito mais nova, que também na sua infância e adolescência, ela e amigos haviam beneficiado do encanto daquele lugar bem agradável.
Seguiu-se o abandono das nossas Aldeias, o desapego por tudo aquilo em que crescemos, acreditámos e nos fizemos gente. Também ao Sobreiral havia de calhar destino semelhante.
Meses atrás, quis visitar o Sobreiral, subir à Penha de Águia. Um dos meus netos e um seu amigo, dez anos de idade, dispuseram-se a fazer-me companhia para eu rever um local onde havia sido feliz.
Como ouvira de minha Mãe, 20 anos atrás, “ó filho, a Aldeia que tu conheceste já não existe!” os meus olhos não se encheram daquele verde sempre presente, no frio e no calor, da folhagem do arvoredo. Mão criminosa ou descuidada ateara a chama em que o Sobreiral se consumira. Aqui e além um sobreiro que escapara; de resto apenas esqueletos em pé. Do que fora vida e encanto nada restava. As giestas e os codeços enormes haviam tomado conta daquele lugar de sonhos. Mesmo assim, incitando-nos uns aos outros, tomámos a Penha de Águia por nosso limite. Não foi fácil a subida. Aproveitámos o trilho de tractores e uma ou outra vereda a fazer lembrar tempos distantes. Depois foi a “corta mato”, desvio para aqui, desvio por acolá, subindo, subindo lenta e penosamente. Suados e cansados, ali estávamos na base das grandes pedras de granito. A Penha de Águia, tão perto e tão longe, As giestas cresceram de tal maneira que formavam uma cortina quase impenetrável que só a muito custo e com ferramenta adequada poderia dar uma passagem de acesso lá para cima. Mais do que em 1989, a frase de minha Mãe me soara aos ouvidos:
- Ó filho, a Aldeia que tu conheceste já não existe.
Regressei, cabisbaixo, com as Crianças nos ouvidos:
- Avô, para o ano vamos tentar outra vez?
O Passado e o Futuro, a Descrença e a Fé de mãos dadas.
A Giane. Ouvi-a lá. Com a paixão que só se tem na idade da inocência.