quinta-feira, agosto 20, 2015

Era tempo... história com rostos!

In illo tempore… 
Não havia relógios, nem rádios, nem TV’s, nem jornais, nem bordas d’água, nem automóveis, nem camioneta da carreira sequer. A estrada ainda havia de ser construída, primeiro de terra batida, depois macadamizada… Muitos, muitos anos depois alcatroada. A Missa era em Latim, padre de costas para o Povo, todos virados para Jerusalém… Aqui as pessoas nasciam, cresciam, viviam e morriam sem outros horizontes que não fosse ver as aldeias em redor, muito raramente pôr os pés na Vila. A pé. Descalços pelo caminho, quantas vezes.
Ouvia-se falar que o comboio já passava lá na Fatela, muitas horas de esforço por caminhos intransitáveis que um ou outro mais afoito se atrevia a calcorrear e a ir espreitar,  para depois, olhos esbugalhados, contar: “Medonho”!  “Muito feio”…
Pela altura do sol se sabiam as horas, com a chegada das andorinhas se sabia que era tempo de semear. Dias e dias sempre iguais a tantos outros já vividos.
As olaias começavam a sorrir, os domingos maiores e diz o sacristão para o velho pároco:
- Ó senhor prior, a “festa de flores” deve estar por aí a chegar…
- Tens razão, Manuel, as geadas já foram, as searas vão subindo, trabalho aí nos campos é o que não falta… Olha lá, dás um salto à Vila e “assim como não quer a coisa” vais indagando como param as modas…  se a procissão dos Passos já está na rua.
- Oh! Senhor Prior, com tanto trabalho não me peça uma coisa dessa…
- Repara bem, próximo  no domingo é o teu dia. Sais bem cedo, vais num pé e vens noutro…
O velho prior sabia que não era bem assim. Duas léguas bem medidas em cada sentido, nunca menos de duas horas para lá chegar. Mas confiava na ligeireza daquelas pernas fortes em corpo esguio, músculos trabalhados no árduo labor de cada dia. E usou mais um efeito bem persuasivo:
- Se cá estiveres à saída da missa do dia… vais almoçar na casa paroquial…
Ora, que melhor argumento podia arranjar. Todos sabiam que a irmã do prior o tratava como se deve tratar um abade e os seus cozinhados tinham  fama…
Levantara-se bem cedo, o Manuel, naquele domingo. A tarefa nem era muito difícil, mas levava tempo, claro.
Subia a velha calçada que dava acesso à Vila, ofegante, e bem sacudia a cabeça, incrédulo. Não podia estar a ouvir o que ouvia. Apressou  o passo tanto quanto lho consentia o bater acelerado do coração. Queria ver com os próprios olhos o que os ouvidos se negavam a acreditar. E viu! Um Oooh! de espanto e incredulidade e não perdeu mais tempo com perguntas. A realidade ali estava “nua e crua”…. "Fazendo das tripas coração"..dá meia volta e  “Ala que se faz tarde…” a caminho de Aldeia. Tinha de o fazer. Era urgente... Havia de chegar a tempo.
“Ite, missa est”, acabava de pronunciar o celebrante, quando o pobre sacristão, esbaforido, rompe coxia central acima:
- Senhor Prior, senhor Prior! Grande desgraça. Nem imagina o que lá vi, na Vila…
- Calma, homem! Vá, senta-te e respira! Tragam água… Afastem-se… - conforta-o o sacerdote, homem pouco dado a excitações sem razão.
Tinha sido um burburinho. Os que já estavam fora, voltaram a entrar e o velho templo rebentava pelas costuras. Na sua calma habitual, o sacerdote “dava tempo ao tempo” e, por fim, ordenou:
- Desembucha, homem! Que viste de tão anormal lá na Vila?
- Senhor Prior, não vai acreditar. Eu também não, se não visse… Mas vi… na rua andava a procissão de Domingo de Ramos… Eu vi, eu vi!
- Já domingo de Ramos?! – comentou, na maior calma, o prior.
Hesita breves instantes, coça a cabeça e ordena:
 – Então… olha, vai tocar os sinos às aleluias que não nos hão de ganhar!!!




2 comentários:

Anónimo disse...

Adorei, continue por favor a escrever no blogue.
Lucilis

Maria Helena disse...

Boa Noite, Professor António, cheguei de viagem agora e leio sua menagem. Que bom nos reencontrarmos. O senhor poderá me achar no Facebook:
Maria Helena P Morais. Tenho estado lá com maior frequência.E também na Fan Page: Saite e Insaites da Vida.Nesse local salvo os textos do facejá que é mais fácil lá do que aqui no blog.Abraços